quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O Quinto Elemento: o Gosto do Cérebro

Essa história de existirem apenas quatro gostos básicos sempre foi contra a intuição de que sentimos mais sabores do que isso. De fato, os japoneses bem que sabiam, há quase cem anos, que existe um quinto gosto, além dos tradicionais doce, salgado, azedo e amargo. Um gosto tão especial que o nome em japonês, de difícil tradução, acabou vingando também nas outras línguas: é o gosto “umami”, que pode significar tanto “delicioso” como “pungente”, “saboroso”, “essencial” ou “de carne”.

Mas existe uma tradução mais simples. Trata-se do gosto do glutamato, um sal encontrado nas prateleiras dos supermercados e nas mesas dos restaurantes orientais, vendido como Aji-no-moto ou Sazon, e adicionado ao tempero de macarrão instantâneo e a salgadinhos em geral. E presente naturalmente, também, no molho de soja e em vários alimentos como queijo parmesão, tomate, leite, atum, frutos do mar e... cérebro.

Sim, o cérebro não só é comestível (as versões bovina e ovina são encontradas no seu açougue favorito sob o nome pouco convidativo de “miolos”, iguaria, aliás, muito apreciada pelos franceses), como também é um dos alimentos que mais contém glutamato. Por uma razão muito simples: o glutamato – o mesmo glutamato do aji-no-moto – é o principal neurotransmissor do cérebro, a moeda mais usada na troca de sinais entre neurônios.

Foi o japonês Kikunae Ikeda, da Universidade Imperial de Tóquio, quem no início do século XX caracterizou o gosto umami como um sabor inimitável por qualquer combinação dos quatro sabores básicos. Ikeda também determinou, a partir da análise bioquímica de alimentos ricos no sabor, como o atum e o caldo de carne, que o elemento responsável pelo sabor umami é o glutamato, o mais comum dos vinte aminoácidos - os bloquinhos que compõem as proteínas - essenciais à vida humana.

Segundo a lógica de sinalizar a presença na boca de nutrientes necessários (açúcar, sais minerais e ácidos) ou substâncias tóxicas e indesejáveis (em geral amargas), faz sentido existir um gosto básico sensível ao componente mais comum das proteínas. O glutamato inserido nas proteínas, no entanto, não provoca o sabor umami. Mas com o calor do cozimento, as proteínas se partem em pedaços menores, liberando glutamato – e com ele o sabor “rico” do caldo de carne, por exemplo, riquíssimo em glutamato livre.

Testes de percepção já tinham mais do que comprovado que o glutamato provoca um gosto específico em humanos – e aliás, em ratos também -, mas para reconhecer definitivamente o status do umami como o quinto gosto básico era necessário encontrar um receptor exclusivamente seu: uma proteína na superfície de células da língua que servisse de “encaixe” para o glutamato, para que em seguida uma mensagem acusando sua presença fosse enviada ao cérebro. Ironicamente, foi justamente o “receptor umami” o primeiro dos receptores gustativos a ter seu gene descoberto: até o ano de 2000, os outros gostos, considerados básicos por unanimidade, ainda não tinham receptores identificados.

O fato de o glutamato também ser usado como neurotransmissor sugeria que talvez um dos próprios receptores de glutamato do cérebro fosse usado também na língua. No entanto, o que poderia tornar a vida dos pesquisadores mais fácil, já que a seqüência dos genes para esses receptores cerebrais já era conhecida, colocava dois novos problemas. Primeiro, os receptores de glutamato conhecidos são extremamente sensíveis, de modo que se eles agissem também na superfície da língua, qualquer grãozinho de aji-no-moto provocaria um sabor fortíssimo– o que não é o caso. E segundo, o glutamato também é usado dentro da língua como um neurotransmissor; portanto, já existem receptores no local dedicados à transmissão de sinais para o cérebro, e não diretamente à detecção de glutamato na comida. Como diferenciar qual é o receptor do glutamato dos neurônios e qual o do glutamato da comida?

A natureza ajudou. O receptor umami é semelhante a um daqueles receptores de glutamato do cérebro, sim. Mas falta-lhe um pedaço, o que o torna ao mesmo tempo imprestável para a transmissão de sinais para o cérebro, mas simplesmente perfeito para detectar as altas concentrações de glutamato livre que passam pela boca. Ou seja: é inconfundível.

A equipe do americano Stephen Roper, da Escola de Medicina da Universidade de Miami, já tinha indicações de que um determinado tipo de receptor para glutamato do cérebro estaria envolvido na gustação do umami. Testes em seu laboratório para detectar vários tipos de receptores de glutamato na língua de ratos haviam mostrado a presença de uma versão do receptor chamada mGluR4 (Glu de Glutamato, R de Receptor, 4 de Quarta versão identificada, e m de... metabotrópico, maneira curta de dizer “receptor que requer metabolismo de alguns intermediários dentro da célula para surtir seu efeito”, ao contrário dos outros receptores de glutamato, que modificam diretamente a carga elétrica da célula). Além disso, drogas que ativam especificamente o mGluR4 também têm “gosto de glutamato”, enquanto outras drogas que ativam outros tipos de receptores para glutamato não têm gosto.

No entanto, continuava a incompatibilidade da concentração necessária para “ligar” o receptor. Para resolver a questão, Nirupa Chaudhari e Ana Marie Landin, no laboratório de Roper, fizeram um preparado de línguas de rato (parece até receita de bruxaria!) e aplicaram técnicas de biologia molecular para extrair dali seqüências de DNA semelhantes à do mGluR4. O sequenciamento completo, publicado na revista Nature Neuroscience em fevereiro de 2000, mostrou que a versão gustativa do receptor é truncada: falta justamente parte da região que fica exposta na boca, pescando glutamatos livres na comida. E o que é melhor: embora truncada, essa versão ainda gruda glutamato em concentrações compatíveis com a sensibilidade de tanto ratos como humanos.

Falando em ratos, eles não são os únicos privilegiados, além do homem, a sentir o gosto do glutamato. Até bactérias possuem um receptor parecido, que gruda aminoácidos em geral – o que dá uma idéia da importância do receptor, presente desde nesses serezinhos microscópicos até no todo-poderoso homem, e também sugere de onde surgiu, ao longo da evolução, a família de receptores de glutamato.

A identificação do receptor umami confirma de vez seu status de quinto gosto básico. Mas outro mistério permanece. Embora o glutamato sozinho confira à comida o sabor umami, seu efeito é potencializado pela presença de nucleotídeos parecidos com os que compõem o material genético (você já parou para pensar que come DNA todos os dias? É, leite, carnes e vegetais vêm cheios de DNA, além dos tradicionais açúcares, proteínas e sais minerais. Só que ninguém lembra!). Quem conferir a embalagem dos salgadinhos ou do Miojo verá: lá na lista dos ingredientes estão o inositol monofosfato e a guanosina monofosfato. Talvez esses nucleotídeos interajam com outros receptores, que mais tarde têm seus sinais para o cérebro combinados aos do receptor umami; ou talvez eles se grudem ao mesmo tempo no mesmo receptor, ou até antes, facilitando a detecção do glutamato. Agora que o receptor umami foi identificado, todas essas possibilidades poderão ser testadas diretamente.

Fica faltando apenas conferir se o cérebro, com todo seu glutamato livre, tem mesmo sabor umami. Eu confesso que nunca tive coragem de encarar um ensopadinho de miolos, e mesmo em nome da ciência o prato me parece um tanto nojento, para não dizer fedido. Mas gosto não se discute. Alguém se habilita?

créditos: http://www.cerebronosso.bio.br - publicado no site da Sociedade Brasileira de Neurociência

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Equipe COG