segunda-feira, 26 de março de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - NAUFRÁGIOS E BÚSSOLAS - parte 2/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

Semir Zeki, professor de neurologia do British College, de Londres, também se aproximou desses "marinheiros perdidos", cujo universo passou a se reduzir a uma ilusão. Seus trabalhos sobre as áreas visuais separadas permitiram-lhe compreender diversas patologias, pelo menos curiosas. Certos pacientes se queixavam também de só ver cores na metade de seu campo visual, sendo que a outra metade se oferece ao olhar em um degradé de cinza. Esta "hemiacromatopsia" provém de uma lesão que toca um dos dois hemisférios. Se os dois olhos estiverem abertos, então o paciente vê a vida em cinzento. Sem meios de recuperar um pouco do verde ou do vermelho em uma fuga onírica: também seus sonhos lhe enviam um medonho cinzento. Zeki se lembra de ter examinado em NY, com Sacks, um pintor que ficou acromatópsico.
"Esta doença", explica Zeki, "afetava até sua apreciação da música, pois ele tinha o hábito de traduzir os diferentes sons em cores, um fenômeno sensorial chamado sinopsia, conhecido a partir de certos compositores como Olivier Messiaen". Deprimido por não poder mais buscar prazer nos museus, ele acabou por morar em um estúdio "decorado em preto e branco", os únicos "tons" que a partir de então usou em seus pincéis.

Uma equipe de neurologistas alemães examinou, há uns quinze anos, uma mulher que se queixava de não ver mais em três dimensões. Na realidade, sua percepção era estática. Ela reconhecia perfeitamente os objetos imóveis. Mas era incapaz de distinguir o menor movimento. Olhar diversas pessoas andando em um aposento a incomodava profundamente, pois ela as via tanto aqui como lá, sem perceber os gestos que as levavam de um ponto a outro. "Conversar ficava difícil", explica Semir Zeki, "porque ela não via os lábios dos interlocutores se moverem. Também tinha dificuldade ao servir o chá porque não via o nível subir na chícara.
Do mesmo modo, dificilmente podia atravessar a rua, pois não via o movimento dos automóveis".

A heminegligência também é um caso extraordinário: os que dela sofrem se "esquecem" de se maquiar ou se barbear em uma metade do rosto. Se o médico pedir que descrevam um trajeto conhecido da cidade, citarão apenas os monumentos percebidos em um dos lados ( o relativo à parte não lesada do cérebro). Convidados a percorrer mentalmente o caminho às avessas, descreverão desta vez os monumentos situados na outra calçada...

A linguagem é a essência do homem, naquilo que ele tem de mais elevado: a expressão de seu pensamento,
o compartilhamento com outros de sua própria experiência, a afirmação de seu "eu" , que não saberia ser um outro. A localização, no século passado, das áreas de Broca (articulação das palavras) e de Wernicke (compreensão), ocupou bastante os neurologistas, porque a afasia, ou as diferentes formas de afasia, são um golpe na integridade humana. A natureza é bem feita: se o hemisfério esquerdo fala, mas não (em princípio) o esquerdo, é para evitar engavetamentos (como em um choque frontal entre dois trens). Do mesmo modo, as duas mãos não se precipitam para apanhar uma caneta. Mas a palavra diz tudo? Evocando o sorriso do bebê para sua mãe, o professor François Lhermitte se questiona: "Acho que valorizei demais a linguagem em detrimento das propriedades intelectuais que dependem dela". Seria imprudente tomar as afasias como um crepúsculo do pensamento.

Neurologista e professor do centro hospitalar de Rennnes, Olivier Sabouraud concorda com a tese desenvolvida pelo seu colega da Salpêtrière, Dominique Laplane, sobre "um pensamento para além das palavras". Do mesmo modo que o intelecto pode se perturbar sem nada perder da linguagem, a faculdade de raciocinar pode sobreviver à afasia, que Sabouraud qualifica como "pensamento com uma linguagem enferma". Claro, algumas afecções mentais são reveladas pelo enfraquecimento semântico das palavras. Ao pedir a um paciente que sofre de esquizofrenia que classifique os nomes de aves e de outros (animais) não alados, o doutor Denis Le Bihan observa uma total confusão: as respostas vão do galo ao asno. A ressonância magnética mostra que, em tal doença, as regiões corticais afetadas se superpõe com relação a conceitos muito diferentes. A mistura de gêneros é inevitável.

Christian Desrouéné, defensor da picologia e do estudo dos comportamentos, sublinha a importância da linguagem interior: "Se dizem coisas na cabeça", explica ele, "e o pensamento se desenvolve a partir dessa linguagem". E' quando um homem perde o fio desse diálogo íntimo que ele perde também a noção do que ele é. Mas onde situar, como explicar os estados de consciência? Um menino que volta da escola, bate na porta e diz "Sou eu", fez o aprendizado de sua realidade, do mundo que o cerca e que é um não-eu. Gerald Edelman não hesita em aplicar sua teoria do darwinismo neuronal: a consciência seria o fruto de uma seleção de células cerebrais que permite aos que delas são dotados acionar simultaneamente memórias, categorias, valores, sobre o modo cognitivo da abstração. Tratar-se-ia de de uma ordem biológica reconhecida por outro prêmio Nobel, o físico e químico Francis Crick, em seu livro A Hipótese Estupidificante: A Procura Científica da Alma.

Crick, a quem devemos a descoberta da estrutura em dupla hélice do DNA, é tão materialista quanto Edelman: a vida mental obedeceria ao curso extravagante das ligações intersinápticas. Da matéria, um monte de neurônios, por certo diferenciados, nasceria este estado impalpável e inapreensível: a consciência. Crick é ainda mais preciso: ele atribui à ativação sincronizada dos neurônios, por volta de quarenta vezes por segundo (40 Hz), entre o tálamo e o córtex, a "colocação no fogo" desta propriedade invisível. Nem o scanner, nem a câmera de pósitrons, nem o ímã da ressonância magnética, podem prender na armadilha da imagem este puro estado mental. Como duas moléculas não líquidas de hidrogênio e uma de oxigênio fazem a água, a superposição de milhões de neurônios interconectados permitiria à consciência emergir, a soma dos componentes resultando em algo diferente de suas qualidades individuais.

Haveria então um determinismo biológico, como aquele que deixou na boca de Flaubert o gosto de arsênico depois de ter descrito o envenenamento de Emma Bovary... "O que se convencionou chamar de consciência", escreve Jean-Pierre Changeux, "define-se como um sistema de regulação global que se relaciona aos objetos mentais e aos seus cálculos".

Os pesquisadores reconhecem: não existe até hoje uma teoria satisfatória sobre este estado particular que dá ao homem o sentimento agudo de sua singularidade. O dualismo cartesiano é eclipsado pelo monismo triunfante: o espírito reintegrou o corpo, bem particularmente o córtex. "Não existe ocorrência mental sem ocorrência cerebral", diz Claude Jouvent, citando François Lhermitte. Prodigiosa economia existente no mundo, exploradora dos possíveis e dos porquês, máquina incomparável para ... comparar, a substância cortical está longe de ter revelado seus segredos, já que ninguém quer ouvir falar de mistério.

Entre o nascimento de uma criança e o fim de sua epigênese (a autoconstrução do cérebro), passa-se uma quinzena de anos, durante os quais se acumulam aprendizagens e sistemas de valores. Adulto, conhece o bem e o mal, mesmo se não aprendeu a teoria da Queda, segundo a qual o ser humano, expulso do reino das virtudes, guardou inscrito em si os traços deste Eden. "Deve-se dizer que se trata de um problema científico", insiste Changeux. "Devemos formular as hipóteses e colocá-las à prova segundo princípios de arquitetura, para observar o que é mobilizado no estado central". (E devemos) nos interrogar sobre estes pontos comuns aos homens, que fazem com que ninguém ria durante o espetáculo de uma tragédia de Racine.

A viagem mal começa. Quem está com a bússola? O homem "empoleirado em seu cérebro", determinado a deixar a "idade das febres" que ainda reina sobre as atividades mentais, e também (deixar) os sofrimentos e as alienações. Determinado a compreender enfim porque ele pensa o que pensa... Neurociências, bioquímica, biologia molecular, linguística, genética, psicologia e psiquiatria, também psicanálise: as naves se preparam para descobrir as últimas fronteiras do cérebro onde ocorrem as núpcias da alma e do corpo, sob o crivo da razão. O encéfalo continua sendo o "tio americano" caro a Henri Laborit, o cirurgião da marinha que, pela primeira vez, teve a idéia dos neurolépticos. O homem, a seus olhos, só tinha uma idéia na cabeça: dominar. Veja-o às vésperas de se dominar.

quarta-feira, 21 de março de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - NAUFRÁGIOS E BÚSSOLAS - parte 1/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

5. NAUFRÁGIOS E BÚSSOLAS

Nós superpusemos sobre os vasos maravilhosos imaginados por Galeno, sua rede admirável, ou rete mirabile, que ele acreditava se estender entre o cérebro e o córtex. O final do périplo nos ensinou que o encéfalo do homem palpita, se amotina e sofre, que o espírito cartesiano não está afastado nem do corpo nem dos afetos. Graças às suas funções cognitivas julgadas superiores, aquelas que lhe permitem impor-se sobre o reino animal e dominá-lo, o Homo sapiens realizou seu destino de caniço (coisa frágil) pensante, com a linguagem articulada como "agente principal de seus notáveis progressos", segundo a análise de Darwin.
Mas provavelmente Galeno teve a boa intuição: se o ser humano é uma memória, uma memória muito antiga que age, ele traz um coração em seu cérebro, que governa sua razão com tanta firmeza quanto seus sistemas lógicos de reflexão.

O doutor Denis Le Bihan, do CHU de Orsay, confessa seu sonho de um dia colocar o homem de cro-magnon sob o ímã de seu scanner para saber o que ele possuía a mais ou a menos do que o bípede moderno. Jean-Pierre Changeux, em suas conversações com o matemático Alain Connes, continua à procura dos mecanismos que fazem surgir, no lobo frontal, hipóteses complexas que certamente não eram formuladas pelos primeiros humanos. Para isto, diz Changeux, "teria sido necessário colocar o cérebro de Arquimedes sob a câmera de pósitrons alguns segundos antes que ele gritasse Eureka!"

Em lugar desses fantasmas anacrônicos, o vigia colocado no topo do mastro dos conhecimentos só tem uma débil palavra nos lábios: "Ignorabimus". Quantas destas viagens de Narciso deverá ainda o homem empreender para contemplar seu córtex como num espelho e nele ler transparentemente as razões que o impulsionam sempre a recomeçar sua procura! O professor Jean-Didier Vincent evoca esta "impaciência exploratória que mantém o cérebro em tensão por antecipação quanto à finalidade a ser alcançada". Se ele sabe trabalhar, sem conhecimento do consciente, para preencher as lacunas da memória, os buracos negros do espírito onde se perdem os nomes próprios, os rostos, e às vezes a própria vida de cada um, apostamos que ele se superará para partir em sua própria descoberta. Darwin e os naturalistas ensinaram ao bípede que ele não era uma finalidade da evolução. Se os genes mutaram, aqueles que o tornaram homem racional, é na escuta de seu órgão "superior" que ele encontrará as respostas, ou que as inventará.

No futuro, Changeux gostaria de ver eclodirem máquinas artificiais verdadeiramente inteligentes, quer dizer, dotadas de propriedades comparáveis às do cérebro humano, "autômatos humanóides que formarão uma rede amigável que facilite o trabalho intelectual" da espécie. Presidente do Comitê de Ética, ele não subestima as ameaças de "escravização deliberada do homem pelo domínio de suas funções cerebrais". Ciência sem consciência... Daí, será que fizemos flutuar e investigamos todas as Atlântidas do universo cerebral, todos os rochedos, que afloram com dificuldade, do "eu visível", considerados por Taine "incomparavelmente menores do que o eu obscuro"?

Um cérebro funcionando bem estabeleceu as representações do mundo, um vasto plano sobre o cometa feito de antecipações, de cálculos, de esperanças e de desejos. O córtex de cima, aquele das belas idéias, dos discursos na tribuna e dos afrescos da Capela Sistina, comunica-se sem parar com os estágios considerados levianamente como inferiores, aqueles que organizam as preferências e as aversões, aqueles que, mais baixo ainda, gritam de fome ou encorajam amores fecundos. Nesta profusão neuronal duplicada por mecanismos hormonais, o córtex faz o que os genes, ultrapassados pela amplitude da tarefa, deixaram a cargo de cada um: escolher. Imprimir a linguagem em seu hemisfério esquerdo, mas por que não o direito? Ser destro, mas por que não canhoto? "O passado nos impulsiona", parecia lamentar Bergson. Nada está inscrito no córtex - a não ser uma natureza humana - que a história à altura do homem não venha a corrigir, prolongar, desmentir.

Órgão central e distribuído, o cérebro capta as luzes através da retina, os sons pela cóclea do ouvido, os odores pelo bulbo olfativo. O vestíbulo, também ele alojado no ouvido, assegura o equilíbrio do conjunto. Os estados do corpo, aquilo que o professor Damasio chama de "o espírito do corpo", ele os vê como através de uma luneta ou de um periscópio instalado no hipotálamo, onde vão e vêm os humores do momento. Ele não abriga nenhum sítio integrativo, e portanto a visão do cosmos é una, indivisível, e também imprevisível: quanto mais o córtex se desenvolveu, mais seu impulso frontal lhe permitiu ganhar em complexidade, nuances, e mais a parte de indeterminismo, senão do irracional, aumentou.

Computador sem programador, configurando a si próprio e, sem repetição, a seus circuitos, liberado das crenças de "um deus na cabeça" (mesmo que o prêmio Nobel de medicina, Sir John Eccles, afirme que a alma é reunida ao feto, pelo Senhor, três semanas após a concepção...), o cérebro é uma quantidade de energia disponível a todo instante, um potencial elétrico que recruta batalhões de neurônios para missões muito especiais, encaixados com base na experiência, também apropriados à frustração das surpresas da novidade. "Os homens em estado de vigília têm um só mundo", observou Heráclito. "No sono, cada um retorna a seu próprio mundo". Como os comportamentos desejantes - por essência singulares - se opõe aos instintos gregários da espécie, a atividade cerebral participa da "individuação" cara a Alain Prochiantz. O córtex passa seu tempo criando categorias, classificando segundo modos lógicos e/ou afetivos os seres e os objetos que o cercam. O professor Damasio sugere que pela diferença entre as ferramentas, cuja representação mental está ligada ao gesto manual (bater com um martelo, cortar com um serrote), e os animais selvagens, será imprudência memorizar através de uma imagem associada à mão.

Mas acontece que os processos ultrarápidos que governam este prodígio da palavra, do reconhecimento dos outros, do pensamento livre e do gesto criativo, súbito, sem aviso, se desarrumam e morrem. Eis os continentes perdidos, os hemisférios lesados, às vezes seccionados para represar as epilepsias através do método do "split brain" (cérebro dividido). Eis os naufrágios, o olho idiotizado e a linguagem debilitada, o encerramento em um mundo que nem é mais comum nem próprio, mas um mundo sem retorno do qual o mal de Alzheimer, pela infinidade de sistemas que demole, é a ilustração extrema, de uma intensidade assombrosa. Este mesmo córtex que secreta as endorfinas para acalmar as dores do corpo (seu próprio ópio, diz Jean-Didier Vincent), este mesmo córtex, que ocupou a duração de sua vida em construir um homem, acaba assim por perdê-lo, privando-o da bússola na tempestade de seu nada.

A seu tempo um sucesso literário, depois teatral, graças à eficaz e sensível encenação de Peter Brook: O
Homem que Tomava sua Mulher por um Chapéu, o livro do neurologista americano Oliver Sacks delinea com toda a gravidade necessária o território destas existências amputadas do real pelos enganos do cérebro.
Fundamentando-se sobre esta tradição universal e ancestral em virtude da qual "os pacientes sempre contam suas histórias aos médicos", Sacks esboça o retrato de personagens desorientados, que ele afirma serem "os viajantes de países inimagináveis; países sobre os quais, ainda, não temos a menor noção".

Assim é o "marinheiro perdido", um homem de uns sessenta anos cujo relógio interno parou na época de sua juventude, quando servia na marinha americana. Se o neurologista lhe mostra o rosto em um espelho, ele não acredita, protesta, grita contra a fraude. "Vejamos, eu tenho uns 19 anos, doutor. Estarei com 20 anos no meu próximo aniversário". Sofrendo de amnésia retrógrada, afetado por uma síndrome de Korsakov (destruição da memória pelo álcool), só lhe restou a consciência de ter vivido uma vida, outrora. Todo o resto se dissipou. "Se um homem perdeu uma perna ou um olho, ele sabe que perdeu uma perna ou um olho", nota Sacks. "Mas se ele perdeu o 'si', se ele perdeu a si mesmo, ele não pode saber isso, pois não há ninguém para sabê-lo".

Ele também encontrou esta mulher, vítima de uma grave deficiência do "sentimento de sua individualidade", que não sentia mais seu corpo e vivia com a terrível impressão de ser desencarnada. "Não tenho nervos, como uma rã", confessa ela a Sacks, impotente para se construir uma representação do mundo através de sua própria existência. Um paciente hemiplégico se queixou um dia ao médico de ter encontrado em sua cama, sem que soubesse, uma perna cortada, a perna de outra pessoa. Quando ele a empurrou, "ela o seguiu, e agora estava grudada nele..." Após a perda da consciência de seu membro paralisado, ele não para de chamá-lo de "falsificação", ou de "facsímile".

Um dos casos mais inquietantes contados por Sacks é a história do professor de música que verdadeiramente tomava a cabeça de sua mulher por um chapéu. Ao final de uma consulta, escreve o neurologista, "ele segurou a cabeça de sua mulher, tentando levantá-la para colocar sobre a (sua) cabeça. (...) Sua mulher olhou-o como se para ela aquilo fosse normal". Na realidade, as áreas visuais desse professor estavam tão deterioradas que ele era incapaz de reconhecer os rostos das pessoas. Ele não tinha mais nenhuma visão de conjunto, mas se perdia - ou se reencontrava - nos detalhes: ele relacionava Churchill a seu charuto, Einstein à sua cabeleira e a seu bigode, seu próprio irmão por causa de seu típico queixo quadrado. Senão, os rostos nada lhe diziam. Seus alunos, ele os distinguia pela voz. `A diferença de Ravel, ele não sofria de nenhuma amusia, mesmo parcial. "Seus lobos temporais estavam manifestamente intactos: ele tinha um maravilhoso córtex musical", nota Oliver Sacks. Em troca, o teste da luva foi edificante. Veja uma breve passagem do diálogo que ocorreu entre o paciente - que até agora consideramos apenas um pouco distraído ou excêntrico - e seu médico.

"O que é isso? "

"Uma superfície contínua, dobrada sobre si mesma. Parece ter cinco excrescências, por assim dizer".

"Sim, você me fez uma descrição. Agora me diga o que é".

"Algum tipo de recipiente? "

"Sim, e o que ele contém? "

"Ele contém seu conteúdo! Isso poderia ser um porta-moedas, por exemplo, destinado a moedas de cinco tamanhos diferentes..."

Conhecida pelo nome de agnosia visual ( e pelo nome de prosopagnosia, com referência à perda de rostos), esta afecção grave, localizada sobretudo no hemisfério direito, ilustra o quanto uma perda seletiva da visão não altera somente as sensações, mas também o juízo (julgamento). No final do século passado, o neurologista francês Dejerine já tinha assinalado tais dificuldades. A retina está normal, os olhos também. Os pacientes podem distinguir perfeitamente um nariz, uma boca, as orelhas, sem conseguir montar o quebra-cabeça. As técnicas modernas revelaram que uma ínfima zona cerebral vizinha da V4 (a área da cor) estava afetada.

sexta-feira, 16 de março de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - O CARROSSEL DAS EMOÇÕES - parte 2/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

Autor do livro Biologia das Emoções, Vincent caça em um terreno próximo daquele explorado por Damasio. 
E eles não são os dois únicos nestes limbos cerebrais cujos vetores são menos elétricos que líquidos e químicos, cheios de hormônios excitadores ou inibidores, de bílis negra e de atrabílis (melancolia), de humores que nadam de cima para baixo e de baixo para cima na extraordinária capilaridade do cérebro. 
Negar as emoções e seus agentes leva a amputar do córtex uma de suas principais dimensões, que, nota Vincent, "reconstitui em torno das células o ambiente marinho original". Ao lado do cérebro interconectado, percorrido por influxos nervosos e mensageiros químicos, ele identifica um "cérebro fluido", hormonal e humoral, "que modifica sem cessar, em todas as suas estruturas, o funcionamento do primeiro". A sede presumida deste segundo órgão se situa no grande lobo límbico e nas fontes do hipotálamo, estas zonas sensíveis onde o cérebro "cuida do corpo" (fora de nossa consciência, ele regula os batimentos do coração, ativa os músculos respiratórios, vela pela procura de uma boa temperatura, de uma luz conveniente), sempre nos alertando o espírito sobre nossos "tempos nublados e tempos claros".
Penetrar no ambiente úmido do córtex é uma empresa perigosa. Podemos nos perder, ou afogar, mesmo que Vincent avalie o volume do líquido céfalo-raquidiano em 100 ml, como ele diz: "Dois cálices de bordeaux..." 
A troca de fluidos, expressão das "paixões", tem um papel regulador. Uma necessidade nascente alerta o cérebro sobre sua realidade com o envio de esteróides (que atravessam as membranas lipídicas e ultrapassam sem problemas a barreira que protege o cérebro) ou de peptídeos - ácidos aminados - fixando-se sobre as membranas das células nervosas. A lista desses hormônios com "ina" é grande: insulina, bradiquinina, endomorfinas. "O público deverá se familiarizar no futuro com esta linguagem oculta de nossa vida interior", prediz com humor Jean-Didier Vincent. "Talvez não esteja longe o tempo em que diremos: 'Minha colecistoquinina está subindo' em lugar de 'não tenho mais fome', ou 'meu hipotálamo se banha em luberina' ao invés de um banal 'eu te amo' ". Garantias da estabilidade do meio, os hormônios são as sentinelas do corpo, `A menor modificação no organismo, eles alertam o cérebro liberando sua substância através da barreira hematocefálica para encontrar seu receptor neuronal. Um potencial elétrico é então ativado, e faz por sua vez nascer um "neurohumor" do tipo hormonal para reestabelecer o equilíbrio local. O carrossel das emoções roda à toda: injetar no hipotálamo de um rato uma pitada de luberina faz surgir nele vivas pulsões sexuais, que ele satisfaz o mais depressa possível. O coito libera nele uma onda de endorfinas que inibem as células do mesmo hipotálamo e trazem rapidamente a paz dos sentidos. O cérebro à escuta do corpo ordena comportamentos precisos. O ferido que sangra bebe para sustar a diminuição do volume sanguíneo. O homem faminto come. Se ele não tiver nada com que se nutrir, os mecanismos hormonais vão assegurar a integridade de seu metabolismo através de um diálogo entre o visceral - o coração, os pulmões, o intestino, a pele - e o cerebral. O hipotálamo, "cérebro do espaço interior", é o local de manutenção e conservação do corpo, onde se enlaçam os anéis neural e químico. Em suas Cartas de Beaujolais, Claude Bernard teve a intuição dessa arquitetura sutil: "Jamais reverteremos as manifestações de nossa alma às propriedades brutas das construções nervosas", escreveu ele, "e menos ainda compreenderemos as suaves melodias apenas pelas propriedades da madeira ou das cordas do violino necessárias à sua expressão". Há muito o cérebro é visto como uma cidadela intranspugnável, separada do resto do corpo por uma barreira de meninges e de sangue. Foi necessário identificar e depois elucidar a ação dos hormônios (do grego hormâo, eu acordo, nos ensina Jean-Didier Vincent), para que compreendêssemos as idas e vindas que animam o carrossel cerebral. Com as representações que elas dão ao homem de seu próprio estado interno, elas o fazem perceber a fome ou a sede, a dor ou o prazer, o tempo dilatado ou estreitado, como os relógios moles de Dali. Assim, a tristeza se faz acompanhar por imagens mentais desaceleradas, por uma menor capacidade de atenção. A alegria, ao contrário, acelera os processos interiores e deixa de cada instante o pesar pela velocidade como as coisas se passaram. Estes estados dão ao indivíduo a sensação do seu "eu", este "estado central flutuante" que a razão pura é incapaz de conhecer, muito menos de estabilizar, como o testemunha o triste caso de Elliott."E' a partir das regiões do cérebro que são gerados nossos sentimentos e ligações afetivas com o mundo", nota o prof. Vincent, "assim como de outras elaboram-se nossas percepções e movimentos. (...) Podemos conceber máquinas sentimentais, (máquinas) mecânicas nervosas produtoras de nossos desejos e de nossas dores". Espinoza escreveu a propósito do prazer, que ele era "o apetite acompanhado da consciência de si mesmo". Michel Leiris, em uma metáfora de afficione, o comparou ao "encontro sempre possível e sempre adiado do chifre do touro com o peito do toureiro". Fruto atendido, por vezes proibido, do desejo, o prazer pode ser mortal. O cérebro encerra assim as células de auto-estimulação (ou de recompensa), os neurônios de dopamina, cujo receptor se liga com a nicotina e drogas que criam dependência como a cocaína e os opiáceos. Jean-Pierre Changeux e sua equipe do Instituto Pasteur tentaram desativar geneticamente este sistema hedonista em um rato mutante. Em tempo normal, um rato cujo receptor tem alta afinidade com a nicotina libera a cada injeção um neurotransmissor, a dopamina, que o incita a autoadministrar-se novas doses de nicotina. Este sistema "em espiral" é uma verdadeira armadilha posta para o toxicômano para que seus neurônios ditos "dopaminérgicos" o levem sem saber ao abuso da droga. Os ratos "mutados" perdem o gosto pela nicotina. Resta testar no homem este inibidor das paixões... A exemplo do córtex cognitivo, que deve rapidamente estar conectado ao mundo para desenvolver seus programas genéticos da linguagem ou da visão, o córtex afetivo se constrói segundo as mesmas condições. Se a percepção do outro como objeto de desejo for "vandalizada" durante a infância (estupros ou violências sexuais), as representações mentais estarão comprometidas. O desgosto ou o medo se instalam. A memória das emoções torna quiméricas as tentativas de recomeçar-se uma história. "Não se pode refazer um cérebro", diz como que pesaroso o autor da Biologia das Paixões. "Nós só podemos quebrar um galho". Se nos remontarmos aos balbucios da evolução, parece que o homem experimentou as emoções (literalmente: movimento em direção ao exterior) com sua carne, antes de dar ao seu espírito livre curso para explorar o mundo e tentar dominá-lo. Alguns desses afetos pareciam inatos, como o medo diante das ondulações da serpente, que se manifesta por uma reação situada na amígdala. Aquilo que Damasio chama de "presença do corpo" foi percebido por Darwin em um livro breve, A Expressão das Emoções no Homem e no Animal. O naturalista inglês observou assim mímicas faciais comparáveis, que traduzem atitudes de submissão ou de afeto. O homem bípede, com a liberação de seus membros superiores, marcou então sua diferença com uma riquíssima diversidade de sinais exteriores que refletiam seus "estados d'alma". Especialista em sistema nervoso na Escola Normal Superior, Alan Prochiantz sustenta uma visão que ele qualifica, divertido, de "sadiana": "Não existe diferença", afirma ele, "entre a alma e o corpo; o corpo, isso é o pensamento". A organização cerebral lhe dá razão: cada membro - braços, pernas, mãos, pés, mas também dedos, artelhos, lábios ou orelhas - possui uma representação precisa no seio do córtex, que se amplifica se for muito solicitado. Esta correspondência mental do corpo com o espírito se revela nos parkinsonianos que sofrem perda dos movimentos. Quando são convidados a refazer em pensamento os gestos motores que não mais podem realizar, as zonas ativadas no imaginário são também menos ativas do que aquelas que recobram um movimento gestual que permaneceu intacto. O fenômeno do membro fantasma é da mesma ordem: as pessoas amputadas às vezes se queixam de sentir sua perna ou mão ausentes, de sentir frio ou calor, ou vivas dores. Ainda mais perturbador: a percepção tátil de um braço cortado pode ser provocada pelo simples coçar o rosto. O córtex tem horror a áreas inativas. Um território abandonado por falta de membro ativo é então colonizado pelas áreas vizinhas devolutas, seja com referência ao rosto, ao ombro, às partes genitais. 
"Estas percepções 'relatadas' apelam a um campo sensível que parece obedecer a uma lógica precisa", constata Yves Frégnac, diretor de pesquisas do CNRS ( Centro Nacional de Pesquisa Científica). "Os diversos casos clínicos examinados fazem surgir uma associação ponto a ponto entre o membro fantasma e a região do corpo onde ele se manifesta; entre a mão e o rosto, o ânus e o pé, ou ainda entre uma parte genital e o pé". O corpo imaginado tenta se reconstruir sobre o corpo "vivido". No século passado um certo Guillaume-Benjamin Duchenne estudou a expressão facial das emoções com a ajuda de procedimentos eletrofisiológicos, pesquisando "a ortografia da fisionomia em movimento". Seus trabalhos instalaram a primeira pedra (fundamental) da universalidade dos afetos. Contrariamente ao que pretendiam as teses culturalistas (a cultura de um homem pode ser lida em seu rosto), a dor ou a alegria se manifestam através das mesmas contrações musculares nos papuas, nos aborígenes, nos americanos ou nos habitantes da velha Europa, e isso a despeito do "sorriso cruel" imputado aos asiáticos. É' bem um sorriso arcaico que faz bater o coração do alemão Jules e do francês Jim sob a pena (autoria) de Henri-Pierre Roché... Duchenne demonstrou sobretudo que um sorriso espontâneo, causado por uma alegria verdadeira, solicitava de maneira involuntária dois músculos precisos: o grande zigomático e um outro chamado orbicular palpebral inferior. 
Mas, como nota Antonio Damasio, "este último músculo só se ativa involuntariamente". Um responde às conveniências que exige a polidez, o outro às "emoções agradáveis da alma". Um paciente com o córtex motor esquerdo lesado apresenta uma paralisia do lado direito de seu rosto. Instado a mostrar seus dentes, ele só desloca metade da boca. Um tirada humorística, ao contrário, desenha um sorriso completo em sua aparência. Os comediantes profissionais exercitam movimentos faciais sutís para dar ao jogo a aparência do verdadeiro. Elia Kazan exigia que seus atores "sentissem" e emoção e não a simulassem. O cérebro, separando os dois, é de uma implacável sinceridade. Fala a verdade também uma pessoa que, ao ouvir uma triste notícia, empalidece ou, ao contrário, enrubesce. Segundo o ajuste que melhor convém ao organismo, o tônus muscular arterial aumenta, diminuindo o diâmetro das artérias (empalidecendo a pele). Ou o tônus diminui, levando à dilatação dos vasos sanguíneos (enrubescimento da pele). As emoções são os relógios do corpo, e o córtex as interpreta como informações vitais. Pois é disso mesmo que se trata: manter o organismo vivo. "Temos no cérebro as mais velhas células de nosso organismo", encerra Jean-Didier Vincent. "Chega um momento em que os genes da morte destróem muitos neurônios. Podemos perguntar por que esses genes matam o corpo. Tal processo não é uma necessidade inevitável. Por que não imaginar os homens vivendo nove ou dez mil anos! Tomemos o exemplo das células do câncer: elas não estão longe de se tornarem imortais". Com esta última proposição o seríssimo professor de neurofisiologia não deseja anunciar a gênese de um novo homem. Quer apenas dizer que nosso córtex não está bem adaptado ao corpo que o abriga, herdeiro do cro-magnon, nem à soma de tudo o que sabe. O cérebro é, mais do que nunca, um órgão em transformação. A não ser para os que têm a alma doente e o pensamento naufragado.

domingo, 11 de março de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - O CARROSSEL DAS EMOÇÕES - parte 1/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

4. O CARROSSEL DAS EMOÇÕES

Diante do enigma colocado por seu paciente Elliott, o neurologista americano Antonio Damasio mostrou que um déficit emocional pode alterar as faculdades de raciocínio. O professor francês Jean-Didier Vincent forjou o conceito de "cérebro fluido", humoral e hormonal, agindo continuamente sobre o cérebro interconectado, dedicado às funções cognitivas. O efeito do afeto sobre o intelecto.

O hospital universitário de Iowa City, no estado de Iowa, é o maior de gênero nos EUA. Já com um século, ele é a imagem daquele meio-oeste que fere o olhos com sua vertigem horizontal: nenhum arranha-céu, mas vastos imóveis de tijolo à vista, juxtapostos um ao lado do outro à medida em que a medicina anexava novas disciplinas. Formado em Harvard, o professor Antonio Damasio chegou a este centro hospitalar há mais de 20 anos. Hoje dirige o departamento de neurologia. A seus amigos, que lhe perguntam por que este amante dos espetáculos e da cultura, em uma palavra, da "civilização"', não deixou esta existência algo provinciana, ele responde sem hesitar que a atenção que se dá aqui aos pacientes é inigualável. Os médicos cuidam dos pacientes sem conhecerem sua posição social. O Estado se encarrega das despesas dos menos favorecidos.
"O pessoal de Iowa é muito ético", observa o senhor Damasio.

Em sua primeira visita ao hospital, mandou fazer inscrições em braille nos botões dos elevadores. Cada unidade médica funciona como um espaço autônomo. Deve consagrar 1 % de seu orçamento à aquisição de obras de arte realizadas por artistas vivos. O estrangeiro que penetra nesses edifícios pode hesitar e se perguntar se está mesmo em um ambiente hospitalar. Uma tela anuncia as conferências do dia, os concertos, as exposições. A atmosfera é vibrante. Ouvem-se pessoas falando, rindo. A doença não é tudo na vida.

Estes detalhes, que não são verdadeiramente detalhes, adquirem um brilho singular na história a seguir. A solicitude, transformada aqui em regra de ouro, preparou mal o professor Damasio para esta patologia da qual ele ignorava até a existência, e que podemos chamar de "amnésia das emoções". Um paciente que lhe foi apresentado no final dos anos 70 tinha acabado de ter o cérebro operado. O cirurgião o havia livrado de um meningioma, um tumor, - do tamanho de uma tangerina - localizado nas membranas que protegem o córtex, as meninges. Ainda que tivesse retomado suas atividades, certas perturbações de comportamento inquietavam as pessoas próximas. Ele não era mais capaz de gerir seu tempo de maneira racional, de cumprir tarefas que exigissem muitas etapas, por exemplo, perdendo-se na leitura de documentos que havia sido encarregado de classificar. O cérebro de Elliott (assim Damasio o batizou) tinha perdido uma função importante: o sentido do essencial. Este paciente, que se revelaria como sendo de um novo tipo, passava aos olhos das pessoas próximas por simulador ou preguiçoso. Sua mulher pediu o divórcio depois que ele dilapidou as economias do casamento em especulações incertas com um corretor desonesto. "Suas derrapagens assinalavam uma patologia", lembra-se Damasio. "A tragédia desse homem vinha do fato de que ele não era burro nem ignorante, mas frequentemente comportava-se como se fosse. Ele enxergava bem os resultados desastrosos de suas decisões, mas era incapaz de aprender com seus erros". E nenhum sinal de alarme parecia se desencadear nele. O scanner, depois a ressonância magnética, mostrariam as importantes lesões dos lobos frontais de Elliott, sobretudo no hemisfério direito. A linguagem e as áreas motoras estavam intactas, as zonas de aprendizagem e de memória também. O córtex préfrontal, em sua parte chamada de ventro-mediana, estava, ao contrário, grandemente alterado.

Antonio Damasio sentiu que tinha diante de si um Phineas Gage reincarnado, aquele jovem chefe de depósito da Nova Inglaterra que fora ferido por uma barra de ferro na mesma região cerebral um século antes, privando-o da faculdade de raciocinar. Mas naquela época primitiva da neurologia a medicina se contentou em uma análise frenológica do mal de Gage. Damasio dispunha de outros recursos, técnicos e psicológicos, para tentar elucidar o enigma daquele cérebro que, tendo conservado todas as suas habilidades de raciocínio, tinha como que perdido a razão.

Há outros detalhes: Elliott tinha alto quociente intelectual. Os testes de conhecimento e de reflexão por que passou revelaram-se normais. Assim foi com o dos "Leões de Iowa", que consiste em perguntar-se ao paciente o número de leões (ou de girafas, ou de elefantes) existentes em um dos estados da América do Norte. "Para poder responder a isso", explica Damasio, "era necessário invocar uma série de fatos não interligados e raciocinar sobre eles de maneira lógica, para enfim chegar a uma dedução plausível". Saber então que estas espécies não são "nativas" dos EUA, avaliar o número de zoológicos do estado, avaliar o número daqueles animais em cada lugar, e depois deduzir uma cifra aproximada. Elliott saiu-se perfeitamente bem na prova. Ele então podia lembrar, falar, contar, refletir. Mas quando seus interesses estavam em jogo, ele se mostrava então incapaz de decidir conscientemente.

A falha existia, uma falha terrível, escancarada. Mas onde? Perplexo, o neurologista retomou as entrevistas com seu paciente. Ao ouví-lo contar seus problemas sem parecer se importar muito, ele acreditou a princípio que Elliott, às expensas de um heróico autocontrole, escondia seus sentimentos. Mas de repente uma dúvida se insinuou. Damasio então recorreu aos métodos da psicofisiologia e desfilou aos olhos de Elliott fotografias chocantes representando casas em fogo, bairros destruídos por um terremoto, rostos de pessoas feridas em acidentes sangrentos. O próprio Elliott admitiu que não sentia nada, nada mesmo. Acabava de surgir no consultório do neurologista esta perturbadora revelação: a faculdade de raciocinar estava afetada, para não dizer destruída, por um déficit de emoção.

Elliott encarnava ao inverso os laços vitais entre coração e razão. Sua vida vivida em um mundo neutro, sem salvador nem laços, seguia com a corrente, uma vez quebrada a bússola das emoções. Como no caso dos mecanismos lógicos, o afeto testemunhava ali sua dimensão cognitiva. Ao perder sua capacidade de vibrar, Elliott perdeu também sua razão de ser. "Ele podia conhecer, mas não sentir", observa Damasio. "De maneira estranha e não calculada, ele não sofria com sua tragédia. Percebi que eu tinha mais aflição escutando os relatos de Elliott do que ele mesmo parecia ter ao passar por aquilo..." Agindo com sangue frio, incapaz de manifestar uma preferência, este paciente "à parte" abria novas portas para a neurologia ao transtornar completamente certas idéias básicas sobre o funcionamento cerebral. Uma lesão frontal, no "santo dos santos" do pensamento (se admitirmos esta forma pouco laica), poderia alterar a um só tempo os processos de raciocínio e a percepção das emoções. Não existia então nenhum "estágio superior"no cérebro, mas um anel reflexivo, de infinitas verificações (checagens) entre o intelecto e o afeto, cuja localização fluida põe em jogo tanto o neocórtex como as zonas límbicas (o hipotálamo) e o tronco cerebral, para além da medula espinhal.

A conclusão de Damasio se impunha, por mais surpreendente que fosse: o enfraquecimento da capacidade de reagir no terreno das emoções poderia ser a fonte de comportamentos irracionais. Este "contato do terceiro grau" com Elliott sem dúvida decidiu os trabalhos posteriores do pesquisador americano sobre a exploração, senão a explicação, dos fenômenos conscientes; o que ele chama, no subtítulo de seu livro O Erro de Descartes, de "razão das emoções". O distanciamento dos anos (para melhor ver) permitiu ao neurologista de Iowa City construir uma imagem afetiva do cérebro.

Tanto no animal como no homem, o comportamento se inscreve em um plano de demanda pela vida. As emoções logo remetem a um estado corporal que percebe o perigo ou o prazer. A alusão ao invólucro carnal é essencial. De Platão a Descartes, a ciência abandonou esta referência aos "mecânicos", querendo ignorar que desprovido do corpo o cérebro é apenas um órgão virtual. No século passado o psicólogo americano William James notou justamente que uma emoção muito forte não deixava qualquer material mental para representá-la. "Que sensação de medo restaria se não pudéssemos sentir nem os batimentos acelerados do coração, nem o fôlego curto, nem os lábios trêmulos, nem o desconforto no ventre? E' , para mim, impossível imaginá-la".

No pequeno animal da floresta que possui poucos conhecimentos sobre o mundo, o grito do predador provoca uma reação primária de fuga: o sistema de emoções age como uma "proto-razão". Acontece o mesmo com os seres humanos, de maneira muito amplificada. O homem dotado de seu considerável saber quer apresentar-se diversas saídas para cada situação. Os ingredientes de sua decisão parecem tão numerosos, o risco e a incerteza são tais que ele recorre, se puder, à sua experiência passada (sic) de coisas similares. Esta imagem do passado retorna a ele com a emoção da qual estava acompanhada.

O cérebro funciona então segundo "sistemas opostos" (punição-recompensa, dor-prazer), sem perder de vista o cursor que desliza sobre a linha que separa a vida da morte. Antonio Damasio fala de "marcadores somáticos" que enviam um sinal positivo ou negativo da emoção anterior. Eles podem ser conscientes (o nó no estômago) ou inconscientes. Aquele que roubou com sucesso para enriquecer poderá consagrar bastante atenção e lógica a uma má ação, sem perceber nisso o eco desfavorável, ou sem se deter. "Uma pessoa que não conhece seu passado emocional não pode discernir a importância de um ato que a liga ao futuro", explica Damasio. "Pacientes como Elliott são capazes de decidir uma coisa que consideram boas para eles no momento, sem ver que as consequências serão desastrosas dali a quinze anos". Assim foi com as especulações financeiras cujo rendimento imediato lhe pareceu prodigioso. "Pode-se achar que as pessoas desprovidas de emoção são os racionalistas. E' exatamente o contrário!" exclama o neurologista. Ainda que dê grande valor ao afetos no processo de decisão, ele não os identifica com a razão (salvo no caso do pequeno animal). In fine, o homem pode agir contra suas emoções. A renúncia à idéia de matar não é uma pequena conquista da espécie, ainda que frágil...

"Tenho dentro de mim meus tempos nublados e meus tempos claros", disse Pascal. Ele descreveu, sem saber, o mecanismo interior do espírito articulado com o corpo. Durante sua vida, uma pessoa conhece pelo menos cinco sentimentos profundos: a alegria e a tristeza, o medo, o desgosto, a cólera. Das variações podem se produzir, assim como a euforia e o êxtase, a melancolia e o desencontro, ou ainda o pânico e a timidez. E passam-se horas e dias inteiros sem que ela sinta qualquer um deles. Assim ela atravessa o oceano dos humores, bons ou maus, ou nem bons nem maus, que são o plano de fundo do corpo. O cérebro das emoções está lá: um carrossel incessante que reconduz à consciência os estados do físico, fotografando o interior como o olho olha o exterior.

As emoções nos esclarecem sobre uma paisagem íntima feita de entusiasmo ou de desencorajamento, de energia ou de fadiga, de tensão ou repouso. "O que eu sei do mundo", explica o professor de neurofisiologia Jean-Didier Vincent, "eu o soube no sofrimento ou na alegria. Este mundo é reconstruído no interior do cérebro sob a direção dos sentimentos, do vivido. Nossas representações se constróem em um banho afetivo saído de sistemas que não transportam nenhuma informação, mas são regidos do modo passional: amo ou não amo".

terça-feira, 6 de março de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - UMA MÁQUINA CELIBATÁRIA - parte 2/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

Intermezzo sobre as aves. Jacques Ninio nos ensina que elas foram o primeiro instrumento que o homem utilizou para estender o alcance de seu olhar. Os vikings embarcavam em seus drakkars centenas de corvos, que eram soltos em pleno oceano, seguindo a direção de seus olhos para deduzir ou não a presença de terra firme. Segundo Alain Prochiantz, na primavera de cada ano a gaivota perde uma parte de seu cérebro, aquela que lhe permite lembrar onde escondeu sua provisão de grãos. Os traços dessas economias lhe voltam com o outono. Quanto ao canário amarelo, o estudo de de seus centros cerebrais mostra que todos os anos ele perde, sobre as folhas mortas (no outono), suas árias de canções de amor. Ele as recobra na época das cerejas. Alain Prochiantz vê aí "as primeiras indicações de uma possível renovação" dos neurônios, inclusive nos adultos, a despeito de um dogma contrário bem estabelecido. Voltando ao homem, diretamente: se os vikings tiveram a idéia de recrutar corvos vigias - no sentido de sentinelas - e viajantes , se o ser humano, como a gaivota e o canário amarelo, pode renovar "à vontade" seus territórios mentais, então existe o "jogo" no sistema, uma rutura de escala entre o mapa do genoma e o mapa do mundo cerebral. As ordens de grandeza, com efeito, são incomparáveis. Face aos 200.000 genes da espécie humana, o córtex libera 100 milhões de células, cada uma estabelecendo umas dez mil conexões com suas semelhantes, em um espaço astronômico composto de sinapses, o local privilegiado da linguagem neuronal. "O cérebro é uma máquina formidável", escreve Jean-Pierre Changeux, "um universo cujas conexões parecem mais ricas e mais diversificadas do que nossa galáxia, com suas miríades de estrelas". Máquina sem equivalente, "máquina celibatária", à maneira das criaturas dadaístas de Marcel Duchamp, no começo do século, que via neste gênero de objetos solitários "que trabalhavam para a alegria daquele que a construiu", nota Jean-Didier Vincent, "os ateliers produtores do imaginário". Assim é "A casada posta a nu por seus próprios celibatários", exposta no Museu de Filadélfia. Sob a lente do microscópio agitam-se os neurônios e suas ligações nervosas, dendritos e axônios, em múltiplas arborescências. Que arquiteto poderia desenhar a planta desse infinito? Jean-Pierre Changeux descreveu o quebra-cabeça dos anatomistas: 1 cm cúbico de córtex dissecado aleatoriamente contém 500 milhões de sinapses. "Se as contássemos mil por segundo, passar-se-iam entre 3.000 e 30.000 anos antes de nomearmos todas". Lembremo-nos de que as conexões são variáveis. 
Lembremo-nos de que a constância - falar, contemplar, refletir - é filha desta atordoante diversidade ( o neurologista Christian Desrouéné fala de um funcionamento do cérebro "abominavelmente liberal"...) A elucidação dos estados conscientes permanece como desafio científico. "Não é impossível. Deve-se fazer um esforço teórico", observa Changeux, pouco inclinado a subscrever as teses "misteriosistas". Os neuropsicólogos condenam seu reducionismo, uma visão estreita que inscreveria a atividade neuronal no coração de todos os estados mentais. "Tudo passa pela sinapse", admite o professor Christian Desrouéné, "mas não se pode limitar tudo à sinapse". O pesquisador do Pasteur rebate tranquilamente a crítica, invocando a herança de Claude Bernard e sua fé no método experimental: "A marcha da ciência não se envergonha em se mostrar reducionista", explica ele. "O universo cerebral é tão complexo que temos que abordá-lo por vias estreitas, difíceis, onde só progredimos passo a passo. O modelo não esgota a realidade. 
Mas tentamos reduzir esta complexidade a alguns mecanismos simples". Rede pré-interligada de neurônios, o cérebro encontra-se balizado por sinais elétricos e químicos, os segundos ativando os primeiros. Isoladas pela primeira vez há pouco mais de um século pelo italiano Golgi, depois pelo espanhol Ramon y Cajal (autor de soberbas representações do tecido neuronal em tinta nanquim), as células nervosas são percorridas, ao longo de suas fibras, por aquilo que os biólogos de antigamente chamavam de espíritos animais. Descartes evocava o ar circulando nos tubos do órgão. Newton falava de "éter intangível"" . Tratavam-se de impulsos elétricos, um "fato comum" revelável através de eletrodos. Mas os neurônios não se agregam como um tecido terminado, desprovido de dificuldades. As membranas são separadas umas das outras por minúsculos espaços intersticiais, as famosas sinapses, onde Jean-Didier Vincent nota que "seu arranjo preciso e confuso lembra uma tapeçaria de flores"(Biologia das Paixões). Assim como a eletricidade é um circuito multidirecional. Chegando à extremidade dos terminais nervosos, ela libera um agente químico secretado pelo neurônio, um tipo de mensageiro batizado de neurotransmissor, que atravessa o espaço sináptico para alertar a (ou as) célula(s)-alvo e nela(s) despertar uma nova reação elétrica, e depois química. Uns 40 neurotransmissores foram identificados até hoje, entre os quais a acetilcolina e a adrenalina (que provocam a contração dos músculos), ou a dopamina (ligada às sensações de prazer). A nicotina do tabaco, assim como o ópio da papoula, reproduzem o efeito de certos agentes químicos cerebrais. Jean-Pierre Changeux lembra a importância dos trabalhos de Claude Bernard sobre o curare utilizado antigamente (ainda hoje?) pelos índios da América do Sul. "O curare ocasiona a morte por asfixia ao bloquear a ação dos nervos motores sobre os músculos respiratórios"" . Na superfície das membranas, o agente químico é recebido por um receptor situado na junção dos nervos e músculos estriados. Foi ao estudarem enguias de descargas elétricas fulgurantes (três são suficientes para matar um homem) que Changeux e sua equipe isolaram o receptor da acetilcolina, completando a cartografia química - e também farmacológica - do córtex.
O que faz o cérebro com esta pletora de células de ramificações abissais? Prêmio Nobel de medicina, autor de Biologia da Consciência, o americano Gerald Edelman descreveu o funcionamento cerebral como um modo de "darwinismo neuronal". Hoje já se admite que o cérebro funciona segundo um modo seletivo e não instrutivo. `A medida que se forma e se desenvolve, ele abandona certos circuitos inúteis em proveito de conexões repetidas com sucesso, curtidas e recurtidas por uma aprendizagem bem sucedida e recompensada (o gesto que permite pegar um copo, a palavra e as frases que permitem fazer-se compreender). A frequência e a gratificação deixam um traço "mnésico" que se torna indelével. No interesse do plano geral fornecido pelos genes, cada um inventa seus próprios intinerários que venham validar assembléias neuronais ad hoc (NT - pertinentes). O professor Olivier Sabouraud assim descreve a modelagem dos meios de expressão na criança: "Primeiro ela entende (grande) quantidade de sons, antes de ingressar na reciprocidade ao reproduzí-los. Depois vem a restrição: ela se recentraliza sobre diversas conexões privilegiadas e abandona a maioria das outras, que participam somente do ruído de fundo". O infante do homem segue a evolução do pequeno pardal, cujo canto, composto de "sons selvagens" de umas quinze sílabas, se cristaliza, uma vez adulto, em um trilar de acentos monocórdios. Então se produz o que Changeux chama de "estabilização sináptica", a eficiência após diversas rodagens de muitos circuitos neuronais mobilizáveis a cada milisegundo para criar o sentido, chegar enfim a um certo estado de consciência. Instalada sua linguagem, o indivíduo entra em seu pensamento, direciona-o, exprime-o, compartilha-o, ou confronta-o. Constrói para si uma representação do mundo, tanto é verdade que o espírito, Aristóteles percebeu-o bem, não pode passar de imagens. O verbo não diz tudo do espírito: ao olho é necessário menos de um segundo para reconhecer um rosto. Descrito com palavras, fica irreconhecível. Orientar-se no espaço é muito difícil verbalmente (vire à direita, depois duas vezes à esquerda, e na galeria, etc.). Um plano traçado sobre o papel é um guia mais eficaz! Este teatro mental não conhece descanso. A atividade do cérebro só cessa ao final da vida. No fundo de sua história, cada um tece novas conexões, inventa, simula, pesa prós e contras, mede virtualmente as consequências de seus atos, utilizando para isso milhares de experiências do passado, solicitadas instantaneamente como se fossem oráculos. `A noite, no mais profundo do sono, o cérebro realiza uma tarefa bem precisa: consolidar os conhecimentos, condensar os traços, marcar os vestígios como um selo de bronze sobre um tablete de cera. Certamente, a regra da aprendizagem é o esquecimento. Porque para atravessar uma vida inteira o "órgão da civilização" (segundo o neurologista russo Luria) deve se poupar. A memória procedural, aquela que serve para dirigir um automóvel, torna-se rapidamente um automatismo que permite uma atenção divivida (trocar as marchas conversando ou escutando uma peça musical). Nem palimpsesto nem ardósia mágica, o córtex seria antes uma espiral. Tudo o que já viu ou percebeu fica enterrado, mesmo que só seja permitido o acesso às lembranças verdadeiramente "engramadas" que um acontecimento externo ou um afeto particular fazem ressurgir. Aqui, ainda, a memória é uma imagem. O professor Lhermitte evoca algumas passagens de `A Procura do Tempo Perdido, de Proust, para sublinhar o quanto o mundo (em) que mergulha Proust "volta em termos visuais: Combray para sempre, as maneiras dos pequeninos, e, enfim, a alusão aos minúsculos origamis japoneses".

A gênese das lembranças é uma mobilização bastante seletiva de módulos neuronais. Com a intervenção de um simples estímulo, eles estabelecem trajetos através do conjunto do córtex para ali colherem vestígios, fragmentos, como o paleontólogo que só dispõe de fósseis para reconstituir um animal de outra época. A lembrança não é de modo algum o arquivo bem arrumado de um computador que cospe seu conteúdo de modo idêntico. Não existe o "avô dos neurônios", que forneceria se solicitado a imagem de um (neurônio) próximo. Ao contrário, cada lembrança é reconstituída em termos de um jogo de pistas e traços, de uma instrução sem foco. (Ao curso intersináptico Jean-Didier Vincent acrescenta de bom grado o aroma dos odores, a representação olfativa do mundo). Se Marc Jannerod, diretor do Instituto de Ciências Cognitivas, compara a atividade cerebral ao cinema, é para descrever-lhe o princípio dinâmico. "Um filme é uma sequência de imagens imóveis", diz ele. "E' a projeção através de uma lente que cria o movimento. Isto vale para a linguagem e o pensamento: quando o cérebro funciona, os dois põe-se a caminho". Os contatos sinápticos que permitem ao homem construir objetos mentais, interpretá-los à sua maneira para formular hipóteses, agir com economia e discernimento sobre seu ambiente, estes contatos inapreensíveis são a um só tempo todo e parte, comparáveis ao sistema imune. Ninguém pode referí-lo com certeza, mas face ao agressor ele se mobiliza. Apesar dos avanços da imagens médicas, a idéia de cartografar as atividades cerebrais faz surgir uma dificuldade de princípio: como imaginar uma geografia móvel onde, segundo a arquitetura própria de cada indivíduo, os grandes sítios mentais e suas conexões seriam incertos, flexíveis, nômades? Desse modo as regiões implicadas na linguagem ultrapassam em muito a área de Broca. "Comparemos o cérebro com Paris", propõe François Lhermitte. "Se uma bomba destruir a ponte da Concorde, a função circulatória da cidade seria gravemente afetada. Mas isto quer dizer que a circulação automobilística se baseia na ponte da Concorde? Nosso córtex funciona como um todo. Certas zonas são especializadas. Mas cada uma tomada isoladamente não tem qualquer sentido". Deste turbilhão nasce uma conduta inteligente, para a qual não existe nenhuma reação pré-estabelecida. `A abelha incapaz de aprender uma rota de desvio, o Homo sapiens contrapõe uma capacidade lógica de não-confronto. Seu cérebro, ele se o constrói. Com sua parte de liberdade conquistada dos genes impotentes para gerir o universo sináptico, ele nunca cessou de modificá-lo. Um forte impulso frontal o empoleirou no topo da espécie, sem reduzí-lo ao estado de máquina pensante. Que computador reconheceria uma papoula ou uma borboleta , decidiria mudar de opinião, decidiria se reprogramar, ser Goethe e criar o Fausto? Que disco rígido se conceberia como disco rígido? "Não pense em um elefante!", desafia Gerald Edelman. "Reconheça, você pensou nele. E eu também. Mas onde está o elefante? Certamente não neste aposento. Para não pensar nele seria necessário de que você soubesse do que se tratava, que você o rememorasse e até, em certos casos, que evocasse uma imagem dele. Sobretudo, seria necessário que você compreendesse esta linguagem e este pequeno jogo de palavras". O espírito está aí. Se ele pode ser uma coisa ou outra, ele pode ser estimulado.

quinta-feira, 1 de março de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - UMA MÁQUINA CELIBATÁRIA - parte 1/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

3. UMA MÁQUINA CELIBATÁRIA
O desenvolvimento do neocórtex diferencia o "Homo sapiens" das espécies animais. Este sistema central muito complexo, que abriga as informações mais antigas recebidas pelo homem, é a sede de sua consciência e de seu imaginário. Longe de restituir o idêntico à memória, como se fosse um computador, o córtex reconstrói a lembrança em termos de um jogo de pistas e traços. Desta efervecência nasce também a inteligência.
Homem ou macaco? O crânio que Jean-Pierre Changeux tem nas mãos é uma moldagem de tamanho modesto com a testa bem baixa e fugidia, furada por duas órbitas (oculares) salientes. Um primeiro olhar (nos) faria pender para o chimpanzé, mas o olho mordaz do pesquisador do (Instituto) Pasteur logo desmente: aqui está o Homo habilis, com dois milhões de anos, um parente longínquo já dotado daquilo que é próprio do homem - exceto das generosas gargalhadas de Changeux -, um neocórtex, intumescência ainda superficial em nosso ancestral de traços simiescos, verdadeiro big bang da matéria do pensamento graças à qual o homem afastou-se do animal. Alojando em sua cabeça um mundo de representações, de estratégias mais elaboradas do que a (simples) fuga diante do perigo ou do que a caçada para se nutrir, o Homo tornado sapiens superou os obstáculos da corrida pela evolução, tendo como prêmio por sua vitória a angústia de seu destino. Em seu (livro) O Homem Neuronal, Jean-Pierre Changeux cita uma passagem do famoso livro O Acaso e a Necessidade, de Jacques Monod: "O universo não estava prenhe de vida, nem a biosfera (prenhe) do homem", escreveu o (prêmio) Nobel francês de biologia. "Nosso número saiu na roleta. Por que não nos surpreenderíamos, como aquele que acabou de ganhar um milhão, com a estranheza de nossa condição?" 
Esta consciência de ser consciente vem da formidável explosão cortical da espécie, uma estirpe desordenada na qual o homem que se sabe mortal encontra sua ascendência sobre os espíritos animais que nada sabiam disso. E Jean-Pierre Changeux se pergunta se "a evolução genética que levou ao cérebro é a consequência - que dá um frio na espinha - da morte de seu próximo". Os numerosos crânios do Homo erectus encontrados quase sempre fraturados fazem crer na luta fratricida pela vida. Filhos de Caim, mais do que de Abel? Esta questão preocupa menos os pesquisadores do que a da construção cerebral. Será ela o fruto singular da corbelha genética, ou será que é o encontro da espécie com o intinerário de um indivíduo, que sabe que nesse encontro ele está "fora de mão'? Depois da menção, cheia de seriedade, às origens, um dito espirituoso desperta o riso de Changeux: "Entre o inato e o adquirido, nós tendemos a subestimar os dois!" Primeiro a natureza. Na grande planície africana os primeiros homens dispunham apenas do arco reflexo, a panóplia "sensório-motora" dos movimentos, dos odores, da audição e do tato ligados às áreas primárias do encéfalo. 
"Uma organização própria da espécie humana então se instala", explica Changeux. "Seu córtex frontal se desenvolve, e depois as zonas temporo-parietais envolvidas na linguagem. Elas já existiam, mas as proporções mudaram". Aos locais primários que recebiam a informação bruta se reuniram áreas superiores que processavam as mensagens transmitidas pelos sentidos e, ainda mais complexas, por superposições suplementares de neurônios, áreas associativas que estabeleciam ligações entre os sentidos, captando os sinais do conjunto do córtex para elaborar. Por trás da fronte do pensador, as sínteses mentais. "Não existe um soberano ali", explicita Changeux. "O córtex frontal participa de maneira dominante na tomada de decisões, mas a distribuição das áreas forma um mosaico de conjuntos interligados, de uma área para outra, de um hemisfério para outro". Deste modo ele define a "conectividade recíproca" do cérebro humano, que surge como uma imensa rede interconectada composta de células por sua vez muito especiais - e especializadas - que dialogam com o todo em movimento, estabelecendo no espaço neuronal ligações telefônicas (uma para cada uma) e radiofônicas (uma para milhares). Tudo aquilo que, no cérebro, não salienta os sentidos e os movimentos, teve um progresso prodigioso, a ponto de remodelar inteiramente o maquinário cerebral. Temos que abandonar a imagem de sucessivas camadas de neurônios estanques e autônomos, que se acumularam no curso da evolução. O córtex é, ao contrário, um estado jacobino, visceralmente centralizador, que só modifica uma estrutura sob a condição de modificar todas, em um movimento de integração sem precedentes na escala humana. O professor François Lhermitte, do Instituto, impressiona-se com esta força que, por outro lado, fragilizou o físico do Homo sapiens: "Nossa medula espinhal não tem mais a capacidade sensório-motora de uma rã. O neocórtex absorveu as estruturas primitivas. Se você cortar a cabeça de uma galinha ou de um pato, eles continuam a correr. Jamais vimos um homem decapitado andar! A secção da medula espinhal de um ser humano provoca sua paralisia completa". 
Especialista da linguagem na universidade de Rennes, o professor Olivier Sabouraud pôde observar a extrema concentração das áreas corticais nos pacientes com lesões frontais. "Se as camadas superiores do córtex forem atingidas, os estágios primitivos reaparecem e funcionam em seu lugar: o doente apresenta espasmos bucais ou manuais se um inseto passa por seu campo de visão". Onde a massa cinzenta encontrou o terreno de suas anexações (conquistas) dentro da "embalagem óssea" do crânio, limitada em volume pela viagem inicial, e provavelmente iniciática, do recém-nascido através da pélve materna? Alain Prochiantz, especilista em sistema nervoso da Escola Normal Superior, emprega uma metáfora convincente: o cérebro não é uma bola que foi inflada, é uma superfície plana enrugada. "A organização do córtex em dobras permitiu o aumento de (sua) superfície", escreve ele em seu livro As Anatomias do Pensamento, "quando a dobra cerebral que se aloja na caixa craniana enrugou-se em circunvoluções".
E' no interior desses novos espaços nascidos das dobras que aparecem as placas neuronais mais elaboradas, o aperfeiçoamento do arco reflexo que permite, "segundo as recomendações do próprio bom senso", como escreve Prochiantz, "pensar antes de agir"... Desse modo o homem vive seus dias munido de um equipamento genético compreendido entre 100.000 e 200.000 genes, dos quais a metade se exprime no interior de seu córtex. Diferentemente do conjunto do corpo humano, as células cerebrais não se renovam nunca, ou muito pouco (nas zonas olfativas). O cérebro, marco do tempo biológico, abriga as mais antigas informações recebidas pelo homem. Uma necessidade vital: poderíamos imaginar cada indivíduo chegando à idade adulta dotado de um novo cérebro virgem de toda marca, ignorando sua própria identidade, desprovido de suas experiências? E' fácil destruir uma usina e remontá-la com as máquinas mais modernas. Os neurônios que contêm nossas funções superiores, naturais ou adquiridas, não se prestam a nenhuma transação parecida. 
"Nós transportamos por toda a vida nossos modos de pensar que se formam durante nossos períodos de aprendizagem", observa François Lhermitte, encontrando aqui a fonte do choque de gerações. "Os circuitos que nos permitem hoje reconhecer sem espanto nosso rosto no espelho se modificaram de modo sutil", acrescenta Antonio Damasio, "para se adaptarem às modificações que a passagem do tempo lhe causaram". 
Este patrimônio genético próprio do homem é um tipo de figura imposta à espécie, que lhe garante ser aquilo que ela é. "Cérebros algo equivalentes, esta é a prova de que existe uma natureza humana", sublinha Changeux. O pesquisador francês toma por princípio a universalidade de desenvolvimento de um sistema central sob o controle de pequenos arquitetos, os genes. Se tal não fosse o caso, cada um seria uma "massa a ser modelada", com uma organização cortical diferente se tivesse nascido "num casebre ou na corte do rei de Espanha". Mas o espírito não saberia se satisfazer com uma codificação inicial que descartasse uma "escultura de si" (feita) pela experiência. "Certos circuitos corticais desenvolvidos hoje para a escrita devem ter sido ocupados por outra coisa no Homo sapiens das planícies da África, porque a escrita é uma aquisição cultural", admite Changeux. "Como os cegos lêem em braille, isto significa que as áreas visuais foram re-aferenciadas para outras funções". Ao cerceamento genético se junta então uma flexibilidade, uma variabilidade ( o neurofisiologista Jean-Didier Vincent fala de "corredores de fuga" e de "praia de liberdade") que deixam para cada um o sonho de se construir como um indivíduo membro de sua espécie, mas único em seu gênero. "Nosso invólucro genético nos permite deixar entrar a história na construção da máquina", afirma Prochiantz. "No interior do processo conduzido pelos genes existe uma infinidade de possíveis. O que chamamos a posteriori de destino seria imprevisível". Em apoio ao seu argumento, o professor da Escola Normal Superior cita a linguagem simbólica como sendo "a maior força da individuação, tão grande que o Homo sapiens destacou-se da natureza para tornar-se um ser de cultura". A escolha das palavras não admite, se assim podemos dizer, nenhuma discussão: o cérebro do homem está predisposto a falar. Noam Chomsky forjou o conceito de "gramática universal", cujo portador é o balbucio da criança e que lhe permite, no "magma sonoro", relacionar as palavras, um léxico. "A panóplia de conhecimentos do pequeno homem (a criança) é incontestável", observa o psicolinguista Jacques Mehler. "Isto significa que toda pessoa não lesada é capaz de aprender uma língua materna, trate-se de Einstein ou de um autista, com base em um equipamento inato". Mas este pesquisador da Casa das Ciências do Homem acrescenta uma condição essencial ao desenvolvimento da linguagem: "O patrimônio genético se exprime em um meio (ambiente). Ele necessita de um suporte para liberar suas faculdades". A exemplo de Chomsky, Jean-Didier Vincent e Alain Prochiantz relatam a experiência edificante de Frederico II, que, curioso por determinar qual era a língua natural, o grego, o hebraico ou o latim, concebeu afastar crianças de qualquer palavra. "Daí que elas ficaram mudas", nota Prochiantz, à vontade em sua concepção de que "a história tem algo a dizer quanto ao desenvolvimento". O contato com o exterior, o choque de cerebelos, caro a Romain Rolland, deve ocorrer o mais rápido possível na vida da criança. Existe um período crítico da construção cerebral. Se alguns circuitos neuronais de aprendizagem não forem ativados e validados neste intervalo pós-natal, a epigênese, a auto-elaboração do cérebro, permanecerá como letra morta. O indivíduo vegetará sua vida inteira num mundo virtual, com sua alegoria de talentos dobrada (fechada) como um velho leque. O caso dos meninos selvagens ilustra essa lacuna humana explorada de maneira tão pungente e penosa pelo cineasta François Truffaut em sua evocação de Gaspard de l'Aveyron: o doutor Itard, a despeito de sua paciência, não lhe arrancou uma única palavra. Os cegos de nascença vivem o mesmo drama. Uma criança, a quem uma catarata deixou em sua noite primeva, jamais perceberá o mundo com seu olhar, mesmo se o restabelecimento da claridade em suas áreas visuais a liberasse do negro manto. Por não terem sido estimuladas a tempo, suas células cerebrais, seus olhos do interior, permanecerão inertes. "O cego que era admirado por tudo que era capaz de fazer sem a visão, torna-se uma pessoa dotada de visão cujo olho é estúpido. Ele afunda na depressão", escreve Jacques Ninio, biólogo do CNRS, em seu livro A Marca dos Sentidos. Alguns cegos de nascença se suicidaram um dia depois de uma operação bem sucedida, incapazes de decifrar o que distinguiam. Sua imagem mental se compunha "de fragmentos visuais montados de maneira imperfeita", prossegue Ninio. Sua experiência tátil dotou-os de uma certa representação do mundo e dos objetos. Eles tinham que tocar para ver. Com suas palavras de enciclopedista, Diderot tocou no ponto certo: "As crianças", escreveu ele, "perguntam-se se aquilo que não vêem mais deixou de existir. É à experiência que devemos a noção de existência contínua dos objetos". A regra do jogo está delineada: dotado de um potencial singular, o homem só o exprime através do contato com seu meio ambiente, uma vantagem ao contrário que não perdoa as elipses. Neste período sensível - e precoce - da epigênese, nada se perde. A harmonização das partes com o todo pressupõe uma grande variabilidade de conexões neuronais de um indivíduo para outro. "Existe um paradoxo entre a constância das representações e o caráter flutuante do material sobre o qual elas se elaboram", afirma Changeux. Destros e canhotos não criam redes (associações neuronais) idênticas para falar; portanto falam... A montagem não se parece nada com a dos circuitos impressos do computador. O órgão do saber é maleável, a impressão que se instala não é padronizada. A plasticidade dos neurônios permite à visão ou à linguagem migrar para fora dos sítios lesados, antes que tarde demais. "O desenvolvimento de um cérebro coloca entre a pura representação genética e a construção do organismo uma etapa de adaptação, que requer um interação sensorial", escreve Alain Prochiantz. "Haveria duas memórias, uma puramente genética, e outra que, sobre a base de um modelo genético, seria construída pela experiência sensível". Os destinos são temporariamente "lábeis". `A diferença do polvo, ao qual a evolução dá poucas chances de escapar à sua condição previsível, o homem possui o que Changeux chama de gerador de diversidade (GOD, ou generator of diversity, segundo a tradução de Antonio Damasio...); inspirada no modelo darwiniano, esta noção sublinha sempre a variabilidade espontânea das combinações neuronais, a aptidão cortical para se autoprogramar, reconstruir-se a partir de informações recombinadas à luz de uma classificação permanente.