quinta-feira, 1 de março de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - UMA MÁQUINA CELIBATÁRIA - parte 1/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

3. UMA MÁQUINA CELIBATÁRIA
O desenvolvimento do neocórtex diferencia o "Homo sapiens" das espécies animais. Este sistema central muito complexo, que abriga as informações mais antigas recebidas pelo homem, é a sede de sua consciência e de seu imaginário. Longe de restituir o idêntico à memória, como se fosse um computador, o córtex reconstrói a lembrança em termos de um jogo de pistas e traços. Desta efervecência nasce também a inteligência.
Homem ou macaco? O crânio que Jean-Pierre Changeux tem nas mãos é uma moldagem de tamanho modesto com a testa bem baixa e fugidia, furada por duas órbitas (oculares) salientes. Um primeiro olhar (nos) faria pender para o chimpanzé, mas o olho mordaz do pesquisador do (Instituto) Pasteur logo desmente: aqui está o Homo habilis, com dois milhões de anos, um parente longínquo já dotado daquilo que é próprio do homem - exceto das generosas gargalhadas de Changeux -, um neocórtex, intumescência ainda superficial em nosso ancestral de traços simiescos, verdadeiro big bang da matéria do pensamento graças à qual o homem afastou-se do animal. Alojando em sua cabeça um mundo de representações, de estratégias mais elaboradas do que a (simples) fuga diante do perigo ou do que a caçada para se nutrir, o Homo tornado sapiens superou os obstáculos da corrida pela evolução, tendo como prêmio por sua vitória a angústia de seu destino. Em seu (livro) O Homem Neuronal, Jean-Pierre Changeux cita uma passagem do famoso livro O Acaso e a Necessidade, de Jacques Monod: "O universo não estava prenhe de vida, nem a biosfera (prenhe) do homem", escreveu o (prêmio) Nobel francês de biologia. "Nosso número saiu na roleta. Por que não nos surpreenderíamos, como aquele que acabou de ganhar um milhão, com a estranheza de nossa condição?" 
Esta consciência de ser consciente vem da formidável explosão cortical da espécie, uma estirpe desordenada na qual o homem que se sabe mortal encontra sua ascendência sobre os espíritos animais que nada sabiam disso. E Jean-Pierre Changeux se pergunta se "a evolução genética que levou ao cérebro é a consequência - que dá um frio na espinha - da morte de seu próximo". Os numerosos crânios do Homo erectus encontrados quase sempre fraturados fazem crer na luta fratricida pela vida. Filhos de Caim, mais do que de Abel? Esta questão preocupa menos os pesquisadores do que a da construção cerebral. Será ela o fruto singular da corbelha genética, ou será que é o encontro da espécie com o intinerário de um indivíduo, que sabe que nesse encontro ele está "fora de mão'? Depois da menção, cheia de seriedade, às origens, um dito espirituoso desperta o riso de Changeux: "Entre o inato e o adquirido, nós tendemos a subestimar os dois!" Primeiro a natureza. Na grande planície africana os primeiros homens dispunham apenas do arco reflexo, a panóplia "sensório-motora" dos movimentos, dos odores, da audição e do tato ligados às áreas primárias do encéfalo. 
"Uma organização própria da espécie humana então se instala", explica Changeux. "Seu córtex frontal se desenvolve, e depois as zonas temporo-parietais envolvidas na linguagem. Elas já existiam, mas as proporções mudaram". Aos locais primários que recebiam a informação bruta se reuniram áreas superiores que processavam as mensagens transmitidas pelos sentidos e, ainda mais complexas, por superposições suplementares de neurônios, áreas associativas que estabeleciam ligações entre os sentidos, captando os sinais do conjunto do córtex para elaborar. Por trás da fronte do pensador, as sínteses mentais. "Não existe um soberano ali", explicita Changeux. "O córtex frontal participa de maneira dominante na tomada de decisões, mas a distribuição das áreas forma um mosaico de conjuntos interligados, de uma área para outra, de um hemisfério para outro". Deste modo ele define a "conectividade recíproca" do cérebro humano, que surge como uma imensa rede interconectada composta de células por sua vez muito especiais - e especializadas - que dialogam com o todo em movimento, estabelecendo no espaço neuronal ligações telefônicas (uma para cada uma) e radiofônicas (uma para milhares). Tudo aquilo que, no cérebro, não salienta os sentidos e os movimentos, teve um progresso prodigioso, a ponto de remodelar inteiramente o maquinário cerebral. Temos que abandonar a imagem de sucessivas camadas de neurônios estanques e autônomos, que se acumularam no curso da evolução. O córtex é, ao contrário, um estado jacobino, visceralmente centralizador, que só modifica uma estrutura sob a condição de modificar todas, em um movimento de integração sem precedentes na escala humana. O professor François Lhermitte, do Instituto, impressiona-se com esta força que, por outro lado, fragilizou o físico do Homo sapiens: "Nossa medula espinhal não tem mais a capacidade sensório-motora de uma rã. O neocórtex absorveu as estruturas primitivas. Se você cortar a cabeça de uma galinha ou de um pato, eles continuam a correr. Jamais vimos um homem decapitado andar! A secção da medula espinhal de um ser humano provoca sua paralisia completa". 
Especialista da linguagem na universidade de Rennes, o professor Olivier Sabouraud pôde observar a extrema concentração das áreas corticais nos pacientes com lesões frontais. "Se as camadas superiores do córtex forem atingidas, os estágios primitivos reaparecem e funcionam em seu lugar: o doente apresenta espasmos bucais ou manuais se um inseto passa por seu campo de visão". Onde a massa cinzenta encontrou o terreno de suas anexações (conquistas) dentro da "embalagem óssea" do crânio, limitada em volume pela viagem inicial, e provavelmente iniciática, do recém-nascido através da pélve materna? Alain Prochiantz, especilista em sistema nervoso da Escola Normal Superior, emprega uma metáfora convincente: o cérebro não é uma bola que foi inflada, é uma superfície plana enrugada. "A organização do córtex em dobras permitiu o aumento de (sua) superfície", escreve ele em seu livro As Anatomias do Pensamento, "quando a dobra cerebral que se aloja na caixa craniana enrugou-se em circunvoluções".
E' no interior desses novos espaços nascidos das dobras que aparecem as placas neuronais mais elaboradas, o aperfeiçoamento do arco reflexo que permite, "segundo as recomendações do próprio bom senso", como escreve Prochiantz, "pensar antes de agir"... Desse modo o homem vive seus dias munido de um equipamento genético compreendido entre 100.000 e 200.000 genes, dos quais a metade se exprime no interior de seu córtex. Diferentemente do conjunto do corpo humano, as células cerebrais não se renovam nunca, ou muito pouco (nas zonas olfativas). O cérebro, marco do tempo biológico, abriga as mais antigas informações recebidas pelo homem. Uma necessidade vital: poderíamos imaginar cada indivíduo chegando à idade adulta dotado de um novo cérebro virgem de toda marca, ignorando sua própria identidade, desprovido de suas experiências? E' fácil destruir uma usina e remontá-la com as máquinas mais modernas. Os neurônios que contêm nossas funções superiores, naturais ou adquiridas, não se prestam a nenhuma transação parecida. 
"Nós transportamos por toda a vida nossos modos de pensar que se formam durante nossos períodos de aprendizagem", observa François Lhermitte, encontrando aqui a fonte do choque de gerações. "Os circuitos que nos permitem hoje reconhecer sem espanto nosso rosto no espelho se modificaram de modo sutil", acrescenta Antonio Damasio, "para se adaptarem às modificações que a passagem do tempo lhe causaram". 
Este patrimônio genético próprio do homem é um tipo de figura imposta à espécie, que lhe garante ser aquilo que ela é. "Cérebros algo equivalentes, esta é a prova de que existe uma natureza humana", sublinha Changeux. O pesquisador francês toma por princípio a universalidade de desenvolvimento de um sistema central sob o controle de pequenos arquitetos, os genes. Se tal não fosse o caso, cada um seria uma "massa a ser modelada", com uma organização cortical diferente se tivesse nascido "num casebre ou na corte do rei de Espanha". Mas o espírito não saberia se satisfazer com uma codificação inicial que descartasse uma "escultura de si" (feita) pela experiência. "Certos circuitos corticais desenvolvidos hoje para a escrita devem ter sido ocupados por outra coisa no Homo sapiens das planícies da África, porque a escrita é uma aquisição cultural", admite Changeux. "Como os cegos lêem em braille, isto significa que as áreas visuais foram re-aferenciadas para outras funções". Ao cerceamento genético se junta então uma flexibilidade, uma variabilidade ( o neurofisiologista Jean-Didier Vincent fala de "corredores de fuga" e de "praia de liberdade") que deixam para cada um o sonho de se construir como um indivíduo membro de sua espécie, mas único em seu gênero. "Nosso invólucro genético nos permite deixar entrar a história na construção da máquina", afirma Prochiantz. "No interior do processo conduzido pelos genes existe uma infinidade de possíveis. O que chamamos a posteriori de destino seria imprevisível". Em apoio ao seu argumento, o professor da Escola Normal Superior cita a linguagem simbólica como sendo "a maior força da individuação, tão grande que o Homo sapiens destacou-se da natureza para tornar-se um ser de cultura". A escolha das palavras não admite, se assim podemos dizer, nenhuma discussão: o cérebro do homem está predisposto a falar. Noam Chomsky forjou o conceito de "gramática universal", cujo portador é o balbucio da criança e que lhe permite, no "magma sonoro", relacionar as palavras, um léxico. "A panóplia de conhecimentos do pequeno homem (a criança) é incontestável", observa o psicolinguista Jacques Mehler. "Isto significa que toda pessoa não lesada é capaz de aprender uma língua materna, trate-se de Einstein ou de um autista, com base em um equipamento inato". Mas este pesquisador da Casa das Ciências do Homem acrescenta uma condição essencial ao desenvolvimento da linguagem: "O patrimônio genético se exprime em um meio (ambiente). Ele necessita de um suporte para liberar suas faculdades". A exemplo de Chomsky, Jean-Didier Vincent e Alain Prochiantz relatam a experiência edificante de Frederico II, que, curioso por determinar qual era a língua natural, o grego, o hebraico ou o latim, concebeu afastar crianças de qualquer palavra. "Daí que elas ficaram mudas", nota Prochiantz, à vontade em sua concepção de que "a história tem algo a dizer quanto ao desenvolvimento". O contato com o exterior, o choque de cerebelos, caro a Romain Rolland, deve ocorrer o mais rápido possível na vida da criança. Existe um período crítico da construção cerebral. Se alguns circuitos neuronais de aprendizagem não forem ativados e validados neste intervalo pós-natal, a epigênese, a auto-elaboração do cérebro, permanecerá como letra morta. O indivíduo vegetará sua vida inteira num mundo virtual, com sua alegoria de talentos dobrada (fechada) como um velho leque. O caso dos meninos selvagens ilustra essa lacuna humana explorada de maneira tão pungente e penosa pelo cineasta François Truffaut em sua evocação de Gaspard de l'Aveyron: o doutor Itard, a despeito de sua paciência, não lhe arrancou uma única palavra. Os cegos de nascença vivem o mesmo drama. Uma criança, a quem uma catarata deixou em sua noite primeva, jamais perceberá o mundo com seu olhar, mesmo se o restabelecimento da claridade em suas áreas visuais a liberasse do negro manto. Por não terem sido estimuladas a tempo, suas células cerebrais, seus olhos do interior, permanecerão inertes. "O cego que era admirado por tudo que era capaz de fazer sem a visão, torna-se uma pessoa dotada de visão cujo olho é estúpido. Ele afunda na depressão", escreve Jacques Ninio, biólogo do CNRS, em seu livro A Marca dos Sentidos. Alguns cegos de nascença se suicidaram um dia depois de uma operação bem sucedida, incapazes de decifrar o que distinguiam. Sua imagem mental se compunha "de fragmentos visuais montados de maneira imperfeita", prossegue Ninio. Sua experiência tátil dotou-os de uma certa representação do mundo e dos objetos. Eles tinham que tocar para ver. Com suas palavras de enciclopedista, Diderot tocou no ponto certo: "As crianças", escreveu ele, "perguntam-se se aquilo que não vêem mais deixou de existir. É à experiência que devemos a noção de existência contínua dos objetos". A regra do jogo está delineada: dotado de um potencial singular, o homem só o exprime através do contato com seu meio ambiente, uma vantagem ao contrário que não perdoa as elipses. Neste período sensível - e precoce - da epigênese, nada se perde. A harmonização das partes com o todo pressupõe uma grande variabilidade de conexões neuronais de um indivíduo para outro. "Existe um paradoxo entre a constância das representações e o caráter flutuante do material sobre o qual elas se elaboram", afirma Changeux. Destros e canhotos não criam redes (associações neuronais) idênticas para falar; portanto falam... A montagem não se parece nada com a dos circuitos impressos do computador. O órgão do saber é maleável, a impressão que se instala não é padronizada. A plasticidade dos neurônios permite à visão ou à linguagem migrar para fora dos sítios lesados, antes que tarde demais. "O desenvolvimento de um cérebro coloca entre a pura representação genética e a construção do organismo uma etapa de adaptação, que requer um interação sensorial", escreve Alain Prochiantz. "Haveria duas memórias, uma puramente genética, e outra que, sobre a base de um modelo genético, seria construída pela experiência sensível". Os destinos são temporariamente "lábeis". `A diferença do polvo, ao qual a evolução dá poucas chances de escapar à sua condição previsível, o homem possui o que Changeux chama de gerador de diversidade (GOD, ou generator of diversity, segundo a tradução de Antonio Damasio...); inspirada no modelo darwiniano, esta noção sublinha sempre a variabilidade espontânea das combinações neuronais, a aptidão cortical para se autoprogramar, reconstruir-se a partir de informações recombinadas à luz de uma classificação permanente.

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