segunda-feira, 26 de março de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - NAUFRÁGIOS E BÚSSOLAS - parte 2/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

Semir Zeki, professor de neurologia do British College, de Londres, também se aproximou desses "marinheiros perdidos", cujo universo passou a se reduzir a uma ilusão. Seus trabalhos sobre as áreas visuais separadas permitiram-lhe compreender diversas patologias, pelo menos curiosas. Certos pacientes se queixavam também de só ver cores na metade de seu campo visual, sendo que a outra metade se oferece ao olhar em um degradé de cinza. Esta "hemiacromatopsia" provém de uma lesão que toca um dos dois hemisférios. Se os dois olhos estiverem abertos, então o paciente vê a vida em cinzento. Sem meios de recuperar um pouco do verde ou do vermelho em uma fuga onírica: também seus sonhos lhe enviam um medonho cinzento. Zeki se lembra de ter examinado em NY, com Sacks, um pintor que ficou acromatópsico.
"Esta doença", explica Zeki, "afetava até sua apreciação da música, pois ele tinha o hábito de traduzir os diferentes sons em cores, um fenômeno sensorial chamado sinopsia, conhecido a partir de certos compositores como Olivier Messiaen". Deprimido por não poder mais buscar prazer nos museus, ele acabou por morar em um estúdio "decorado em preto e branco", os únicos "tons" que a partir de então usou em seus pincéis.

Uma equipe de neurologistas alemães examinou, há uns quinze anos, uma mulher que se queixava de não ver mais em três dimensões. Na realidade, sua percepção era estática. Ela reconhecia perfeitamente os objetos imóveis. Mas era incapaz de distinguir o menor movimento. Olhar diversas pessoas andando em um aposento a incomodava profundamente, pois ela as via tanto aqui como lá, sem perceber os gestos que as levavam de um ponto a outro. "Conversar ficava difícil", explica Semir Zeki, "porque ela não via os lábios dos interlocutores se moverem. Também tinha dificuldade ao servir o chá porque não via o nível subir na chícara.
Do mesmo modo, dificilmente podia atravessar a rua, pois não via o movimento dos automóveis".

A heminegligência também é um caso extraordinário: os que dela sofrem se "esquecem" de se maquiar ou se barbear em uma metade do rosto. Se o médico pedir que descrevam um trajeto conhecido da cidade, citarão apenas os monumentos percebidos em um dos lados ( o relativo à parte não lesada do cérebro). Convidados a percorrer mentalmente o caminho às avessas, descreverão desta vez os monumentos situados na outra calçada...

A linguagem é a essência do homem, naquilo que ele tem de mais elevado: a expressão de seu pensamento,
o compartilhamento com outros de sua própria experiência, a afirmação de seu "eu" , que não saberia ser um outro. A localização, no século passado, das áreas de Broca (articulação das palavras) e de Wernicke (compreensão), ocupou bastante os neurologistas, porque a afasia, ou as diferentes formas de afasia, são um golpe na integridade humana. A natureza é bem feita: se o hemisfério esquerdo fala, mas não (em princípio) o esquerdo, é para evitar engavetamentos (como em um choque frontal entre dois trens). Do mesmo modo, as duas mãos não se precipitam para apanhar uma caneta. Mas a palavra diz tudo? Evocando o sorriso do bebê para sua mãe, o professor François Lhermitte se questiona: "Acho que valorizei demais a linguagem em detrimento das propriedades intelectuais que dependem dela". Seria imprudente tomar as afasias como um crepúsculo do pensamento.

Neurologista e professor do centro hospitalar de Rennnes, Olivier Sabouraud concorda com a tese desenvolvida pelo seu colega da Salpêtrière, Dominique Laplane, sobre "um pensamento para além das palavras". Do mesmo modo que o intelecto pode se perturbar sem nada perder da linguagem, a faculdade de raciocinar pode sobreviver à afasia, que Sabouraud qualifica como "pensamento com uma linguagem enferma". Claro, algumas afecções mentais são reveladas pelo enfraquecimento semântico das palavras. Ao pedir a um paciente que sofre de esquizofrenia que classifique os nomes de aves e de outros (animais) não alados, o doutor Denis Le Bihan observa uma total confusão: as respostas vão do galo ao asno. A ressonância magnética mostra que, em tal doença, as regiões corticais afetadas se superpõe com relação a conceitos muito diferentes. A mistura de gêneros é inevitável.

Christian Desrouéné, defensor da picologia e do estudo dos comportamentos, sublinha a importância da linguagem interior: "Se dizem coisas na cabeça", explica ele, "e o pensamento se desenvolve a partir dessa linguagem". E' quando um homem perde o fio desse diálogo íntimo que ele perde também a noção do que ele é. Mas onde situar, como explicar os estados de consciência? Um menino que volta da escola, bate na porta e diz "Sou eu", fez o aprendizado de sua realidade, do mundo que o cerca e que é um não-eu. Gerald Edelman não hesita em aplicar sua teoria do darwinismo neuronal: a consciência seria o fruto de uma seleção de células cerebrais que permite aos que delas são dotados acionar simultaneamente memórias, categorias, valores, sobre o modo cognitivo da abstração. Tratar-se-ia de de uma ordem biológica reconhecida por outro prêmio Nobel, o físico e químico Francis Crick, em seu livro A Hipótese Estupidificante: A Procura Científica da Alma.

Crick, a quem devemos a descoberta da estrutura em dupla hélice do DNA, é tão materialista quanto Edelman: a vida mental obedeceria ao curso extravagante das ligações intersinápticas. Da matéria, um monte de neurônios, por certo diferenciados, nasceria este estado impalpável e inapreensível: a consciência. Crick é ainda mais preciso: ele atribui à ativação sincronizada dos neurônios, por volta de quarenta vezes por segundo (40 Hz), entre o tálamo e o córtex, a "colocação no fogo" desta propriedade invisível. Nem o scanner, nem a câmera de pósitrons, nem o ímã da ressonância magnética, podem prender na armadilha da imagem este puro estado mental. Como duas moléculas não líquidas de hidrogênio e uma de oxigênio fazem a água, a superposição de milhões de neurônios interconectados permitiria à consciência emergir, a soma dos componentes resultando em algo diferente de suas qualidades individuais.

Haveria então um determinismo biológico, como aquele que deixou na boca de Flaubert o gosto de arsênico depois de ter descrito o envenenamento de Emma Bovary... "O que se convencionou chamar de consciência", escreve Jean-Pierre Changeux, "define-se como um sistema de regulação global que se relaciona aos objetos mentais e aos seus cálculos".

Os pesquisadores reconhecem: não existe até hoje uma teoria satisfatória sobre este estado particular que dá ao homem o sentimento agudo de sua singularidade. O dualismo cartesiano é eclipsado pelo monismo triunfante: o espírito reintegrou o corpo, bem particularmente o córtex. "Não existe ocorrência mental sem ocorrência cerebral", diz Claude Jouvent, citando François Lhermitte. Prodigiosa economia existente no mundo, exploradora dos possíveis e dos porquês, máquina incomparável para ... comparar, a substância cortical está longe de ter revelado seus segredos, já que ninguém quer ouvir falar de mistério.

Entre o nascimento de uma criança e o fim de sua epigênese (a autoconstrução do cérebro), passa-se uma quinzena de anos, durante os quais se acumulam aprendizagens e sistemas de valores. Adulto, conhece o bem e o mal, mesmo se não aprendeu a teoria da Queda, segundo a qual o ser humano, expulso do reino das virtudes, guardou inscrito em si os traços deste Eden. "Deve-se dizer que se trata de um problema científico", insiste Changeux. "Devemos formular as hipóteses e colocá-las à prova segundo princípios de arquitetura, para observar o que é mobilizado no estado central". (E devemos) nos interrogar sobre estes pontos comuns aos homens, que fazem com que ninguém ria durante o espetáculo de uma tragédia de Racine.

A viagem mal começa. Quem está com a bússola? O homem "empoleirado em seu cérebro", determinado a deixar a "idade das febres" que ainda reina sobre as atividades mentais, e também (deixar) os sofrimentos e as alienações. Determinado a compreender enfim porque ele pensa o que pensa... Neurociências, bioquímica, biologia molecular, linguística, genética, psicologia e psiquiatria, também psicanálise: as naves se preparam para descobrir as últimas fronteiras do cérebro onde ocorrem as núpcias da alma e do corpo, sob o crivo da razão. O encéfalo continua sendo o "tio americano" caro a Henri Laborit, o cirurgião da marinha que, pela primeira vez, teve a idéia dos neurolépticos. O homem, a seus olhos, só tinha uma idéia na cabeça: dominar. Veja-o às vésperas de se dominar.

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