sexta-feira, 16 de março de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - O CARROSSEL DAS EMOÇÕES - parte 2/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

Autor do livro Biologia das Emoções, Vincent caça em um terreno próximo daquele explorado por Damasio. 
E eles não são os dois únicos nestes limbos cerebrais cujos vetores são menos elétricos que líquidos e químicos, cheios de hormônios excitadores ou inibidores, de bílis negra e de atrabílis (melancolia), de humores que nadam de cima para baixo e de baixo para cima na extraordinária capilaridade do cérebro. 
Negar as emoções e seus agentes leva a amputar do córtex uma de suas principais dimensões, que, nota Vincent, "reconstitui em torno das células o ambiente marinho original". Ao lado do cérebro interconectado, percorrido por influxos nervosos e mensageiros químicos, ele identifica um "cérebro fluido", hormonal e humoral, "que modifica sem cessar, em todas as suas estruturas, o funcionamento do primeiro". A sede presumida deste segundo órgão se situa no grande lobo límbico e nas fontes do hipotálamo, estas zonas sensíveis onde o cérebro "cuida do corpo" (fora de nossa consciência, ele regula os batimentos do coração, ativa os músculos respiratórios, vela pela procura de uma boa temperatura, de uma luz conveniente), sempre nos alertando o espírito sobre nossos "tempos nublados e tempos claros".
Penetrar no ambiente úmido do córtex é uma empresa perigosa. Podemos nos perder, ou afogar, mesmo que Vincent avalie o volume do líquido céfalo-raquidiano em 100 ml, como ele diz: "Dois cálices de bordeaux..." 
A troca de fluidos, expressão das "paixões", tem um papel regulador. Uma necessidade nascente alerta o cérebro sobre sua realidade com o envio de esteróides (que atravessam as membranas lipídicas e ultrapassam sem problemas a barreira que protege o cérebro) ou de peptídeos - ácidos aminados - fixando-se sobre as membranas das células nervosas. A lista desses hormônios com "ina" é grande: insulina, bradiquinina, endomorfinas. "O público deverá se familiarizar no futuro com esta linguagem oculta de nossa vida interior", prediz com humor Jean-Didier Vincent. "Talvez não esteja longe o tempo em que diremos: 'Minha colecistoquinina está subindo' em lugar de 'não tenho mais fome', ou 'meu hipotálamo se banha em luberina' ao invés de um banal 'eu te amo' ". Garantias da estabilidade do meio, os hormônios são as sentinelas do corpo, `A menor modificação no organismo, eles alertam o cérebro liberando sua substância através da barreira hematocefálica para encontrar seu receptor neuronal. Um potencial elétrico é então ativado, e faz por sua vez nascer um "neurohumor" do tipo hormonal para reestabelecer o equilíbrio local. O carrossel das emoções roda à toda: injetar no hipotálamo de um rato uma pitada de luberina faz surgir nele vivas pulsões sexuais, que ele satisfaz o mais depressa possível. O coito libera nele uma onda de endorfinas que inibem as células do mesmo hipotálamo e trazem rapidamente a paz dos sentidos. O cérebro à escuta do corpo ordena comportamentos precisos. O ferido que sangra bebe para sustar a diminuição do volume sanguíneo. O homem faminto come. Se ele não tiver nada com que se nutrir, os mecanismos hormonais vão assegurar a integridade de seu metabolismo através de um diálogo entre o visceral - o coração, os pulmões, o intestino, a pele - e o cerebral. O hipotálamo, "cérebro do espaço interior", é o local de manutenção e conservação do corpo, onde se enlaçam os anéis neural e químico. Em suas Cartas de Beaujolais, Claude Bernard teve a intuição dessa arquitetura sutil: "Jamais reverteremos as manifestações de nossa alma às propriedades brutas das construções nervosas", escreveu ele, "e menos ainda compreenderemos as suaves melodias apenas pelas propriedades da madeira ou das cordas do violino necessárias à sua expressão". Há muito o cérebro é visto como uma cidadela intranspugnável, separada do resto do corpo por uma barreira de meninges e de sangue. Foi necessário identificar e depois elucidar a ação dos hormônios (do grego hormâo, eu acordo, nos ensina Jean-Didier Vincent), para que compreendêssemos as idas e vindas que animam o carrossel cerebral. Com as representações que elas dão ao homem de seu próprio estado interno, elas o fazem perceber a fome ou a sede, a dor ou o prazer, o tempo dilatado ou estreitado, como os relógios moles de Dali. Assim, a tristeza se faz acompanhar por imagens mentais desaceleradas, por uma menor capacidade de atenção. A alegria, ao contrário, acelera os processos interiores e deixa de cada instante o pesar pela velocidade como as coisas se passaram. Estes estados dão ao indivíduo a sensação do seu "eu", este "estado central flutuante" que a razão pura é incapaz de conhecer, muito menos de estabilizar, como o testemunha o triste caso de Elliott."E' a partir das regiões do cérebro que são gerados nossos sentimentos e ligações afetivas com o mundo", nota o prof. Vincent, "assim como de outras elaboram-se nossas percepções e movimentos. (...) Podemos conceber máquinas sentimentais, (máquinas) mecânicas nervosas produtoras de nossos desejos e de nossas dores". Espinoza escreveu a propósito do prazer, que ele era "o apetite acompanhado da consciência de si mesmo". Michel Leiris, em uma metáfora de afficione, o comparou ao "encontro sempre possível e sempre adiado do chifre do touro com o peito do toureiro". Fruto atendido, por vezes proibido, do desejo, o prazer pode ser mortal. O cérebro encerra assim as células de auto-estimulação (ou de recompensa), os neurônios de dopamina, cujo receptor se liga com a nicotina e drogas que criam dependência como a cocaína e os opiáceos. Jean-Pierre Changeux e sua equipe do Instituto Pasteur tentaram desativar geneticamente este sistema hedonista em um rato mutante. Em tempo normal, um rato cujo receptor tem alta afinidade com a nicotina libera a cada injeção um neurotransmissor, a dopamina, que o incita a autoadministrar-se novas doses de nicotina. Este sistema "em espiral" é uma verdadeira armadilha posta para o toxicômano para que seus neurônios ditos "dopaminérgicos" o levem sem saber ao abuso da droga. Os ratos "mutados" perdem o gosto pela nicotina. Resta testar no homem este inibidor das paixões... A exemplo do córtex cognitivo, que deve rapidamente estar conectado ao mundo para desenvolver seus programas genéticos da linguagem ou da visão, o córtex afetivo se constrói segundo as mesmas condições. Se a percepção do outro como objeto de desejo for "vandalizada" durante a infância (estupros ou violências sexuais), as representações mentais estarão comprometidas. O desgosto ou o medo se instalam. A memória das emoções torna quiméricas as tentativas de recomeçar-se uma história. "Não se pode refazer um cérebro", diz como que pesaroso o autor da Biologia das Paixões. "Nós só podemos quebrar um galho". Se nos remontarmos aos balbucios da evolução, parece que o homem experimentou as emoções (literalmente: movimento em direção ao exterior) com sua carne, antes de dar ao seu espírito livre curso para explorar o mundo e tentar dominá-lo. Alguns desses afetos pareciam inatos, como o medo diante das ondulações da serpente, que se manifesta por uma reação situada na amígdala. Aquilo que Damasio chama de "presença do corpo" foi percebido por Darwin em um livro breve, A Expressão das Emoções no Homem e no Animal. O naturalista inglês observou assim mímicas faciais comparáveis, que traduzem atitudes de submissão ou de afeto. O homem bípede, com a liberação de seus membros superiores, marcou então sua diferença com uma riquíssima diversidade de sinais exteriores que refletiam seus "estados d'alma". Especialista em sistema nervoso na Escola Normal Superior, Alan Prochiantz sustenta uma visão que ele qualifica, divertido, de "sadiana": "Não existe diferença", afirma ele, "entre a alma e o corpo; o corpo, isso é o pensamento". A organização cerebral lhe dá razão: cada membro - braços, pernas, mãos, pés, mas também dedos, artelhos, lábios ou orelhas - possui uma representação precisa no seio do córtex, que se amplifica se for muito solicitado. Esta correspondência mental do corpo com o espírito se revela nos parkinsonianos que sofrem perda dos movimentos. Quando são convidados a refazer em pensamento os gestos motores que não mais podem realizar, as zonas ativadas no imaginário são também menos ativas do que aquelas que recobram um movimento gestual que permaneceu intacto. O fenômeno do membro fantasma é da mesma ordem: as pessoas amputadas às vezes se queixam de sentir sua perna ou mão ausentes, de sentir frio ou calor, ou vivas dores. Ainda mais perturbador: a percepção tátil de um braço cortado pode ser provocada pelo simples coçar o rosto. O córtex tem horror a áreas inativas. Um território abandonado por falta de membro ativo é então colonizado pelas áreas vizinhas devolutas, seja com referência ao rosto, ao ombro, às partes genitais. 
"Estas percepções 'relatadas' apelam a um campo sensível que parece obedecer a uma lógica precisa", constata Yves Frégnac, diretor de pesquisas do CNRS ( Centro Nacional de Pesquisa Científica). "Os diversos casos clínicos examinados fazem surgir uma associação ponto a ponto entre o membro fantasma e a região do corpo onde ele se manifesta; entre a mão e o rosto, o ânus e o pé, ou ainda entre uma parte genital e o pé". O corpo imaginado tenta se reconstruir sobre o corpo "vivido". No século passado um certo Guillaume-Benjamin Duchenne estudou a expressão facial das emoções com a ajuda de procedimentos eletrofisiológicos, pesquisando "a ortografia da fisionomia em movimento". Seus trabalhos instalaram a primeira pedra (fundamental) da universalidade dos afetos. Contrariamente ao que pretendiam as teses culturalistas (a cultura de um homem pode ser lida em seu rosto), a dor ou a alegria se manifestam através das mesmas contrações musculares nos papuas, nos aborígenes, nos americanos ou nos habitantes da velha Europa, e isso a despeito do "sorriso cruel" imputado aos asiáticos. É' bem um sorriso arcaico que faz bater o coração do alemão Jules e do francês Jim sob a pena (autoria) de Henri-Pierre Roché... Duchenne demonstrou sobretudo que um sorriso espontâneo, causado por uma alegria verdadeira, solicitava de maneira involuntária dois músculos precisos: o grande zigomático e um outro chamado orbicular palpebral inferior. 
Mas, como nota Antonio Damasio, "este último músculo só se ativa involuntariamente". Um responde às conveniências que exige a polidez, o outro às "emoções agradáveis da alma". Um paciente com o córtex motor esquerdo lesado apresenta uma paralisia do lado direito de seu rosto. Instado a mostrar seus dentes, ele só desloca metade da boca. Um tirada humorística, ao contrário, desenha um sorriso completo em sua aparência. Os comediantes profissionais exercitam movimentos faciais sutís para dar ao jogo a aparência do verdadeiro. Elia Kazan exigia que seus atores "sentissem" e emoção e não a simulassem. O cérebro, separando os dois, é de uma implacável sinceridade. Fala a verdade também uma pessoa que, ao ouvir uma triste notícia, empalidece ou, ao contrário, enrubesce. Segundo o ajuste que melhor convém ao organismo, o tônus muscular arterial aumenta, diminuindo o diâmetro das artérias (empalidecendo a pele). Ou o tônus diminui, levando à dilatação dos vasos sanguíneos (enrubescimento da pele). As emoções são os relógios do corpo, e o córtex as interpreta como informações vitais. Pois é disso mesmo que se trata: manter o organismo vivo. "Temos no cérebro as mais velhas células de nosso organismo", encerra Jean-Didier Vincent. "Chega um momento em que os genes da morte destróem muitos neurônios. Podemos perguntar por que esses genes matam o corpo. Tal processo não é uma necessidade inevitável. Por que não imaginar os homens vivendo nove ou dez mil anos! Tomemos o exemplo das células do câncer: elas não estão longe de se tornarem imortais". Com esta última proposição o seríssimo professor de neurofisiologia não deseja anunciar a gênese de um novo homem. Quer apenas dizer que nosso córtex não está bem adaptado ao corpo que o abriga, herdeiro do cro-magnon, nem à soma de tudo o que sabe. O cérebro é, mais do que nunca, um órgão em transformação. A não ser para os que têm a alma doente e o pensamento naufragado.

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