domingo, 11 de março de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - O CARROSSEL DAS EMOÇÕES - parte 1/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

4. O CARROSSEL DAS EMOÇÕES

Diante do enigma colocado por seu paciente Elliott, o neurologista americano Antonio Damasio mostrou que um déficit emocional pode alterar as faculdades de raciocínio. O professor francês Jean-Didier Vincent forjou o conceito de "cérebro fluido", humoral e hormonal, agindo continuamente sobre o cérebro interconectado, dedicado às funções cognitivas. O efeito do afeto sobre o intelecto.

O hospital universitário de Iowa City, no estado de Iowa, é o maior de gênero nos EUA. Já com um século, ele é a imagem daquele meio-oeste que fere o olhos com sua vertigem horizontal: nenhum arranha-céu, mas vastos imóveis de tijolo à vista, juxtapostos um ao lado do outro à medida em que a medicina anexava novas disciplinas. Formado em Harvard, o professor Antonio Damasio chegou a este centro hospitalar há mais de 20 anos. Hoje dirige o departamento de neurologia. A seus amigos, que lhe perguntam por que este amante dos espetáculos e da cultura, em uma palavra, da "civilização"', não deixou esta existência algo provinciana, ele responde sem hesitar que a atenção que se dá aqui aos pacientes é inigualável. Os médicos cuidam dos pacientes sem conhecerem sua posição social. O Estado se encarrega das despesas dos menos favorecidos.
"O pessoal de Iowa é muito ético", observa o senhor Damasio.

Em sua primeira visita ao hospital, mandou fazer inscrições em braille nos botões dos elevadores. Cada unidade médica funciona como um espaço autônomo. Deve consagrar 1 % de seu orçamento à aquisição de obras de arte realizadas por artistas vivos. O estrangeiro que penetra nesses edifícios pode hesitar e se perguntar se está mesmo em um ambiente hospitalar. Uma tela anuncia as conferências do dia, os concertos, as exposições. A atmosfera é vibrante. Ouvem-se pessoas falando, rindo. A doença não é tudo na vida.

Estes detalhes, que não são verdadeiramente detalhes, adquirem um brilho singular na história a seguir. A solicitude, transformada aqui em regra de ouro, preparou mal o professor Damasio para esta patologia da qual ele ignorava até a existência, e que podemos chamar de "amnésia das emoções". Um paciente que lhe foi apresentado no final dos anos 70 tinha acabado de ter o cérebro operado. O cirurgião o havia livrado de um meningioma, um tumor, - do tamanho de uma tangerina - localizado nas membranas que protegem o córtex, as meninges. Ainda que tivesse retomado suas atividades, certas perturbações de comportamento inquietavam as pessoas próximas. Ele não era mais capaz de gerir seu tempo de maneira racional, de cumprir tarefas que exigissem muitas etapas, por exemplo, perdendo-se na leitura de documentos que havia sido encarregado de classificar. O cérebro de Elliott (assim Damasio o batizou) tinha perdido uma função importante: o sentido do essencial. Este paciente, que se revelaria como sendo de um novo tipo, passava aos olhos das pessoas próximas por simulador ou preguiçoso. Sua mulher pediu o divórcio depois que ele dilapidou as economias do casamento em especulações incertas com um corretor desonesto. "Suas derrapagens assinalavam uma patologia", lembra-se Damasio. "A tragédia desse homem vinha do fato de que ele não era burro nem ignorante, mas frequentemente comportava-se como se fosse. Ele enxergava bem os resultados desastrosos de suas decisões, mas era incapaz de aprender com seus erros". E nenhum sinal de alarme parecia se desencadear nele. O scanner, depois a ressonância magnética, mostrariam as importantes lesões dos lobos frontais de Elliott, sobretudo no hemisfério direito. A linguagem e as áreas motoras estavam intactas, as zonas de aprendizagem e de memória também. O córtex préfrontal, em sua parte chamada de ventro-mediana, estava, ao contrário, grandemente alterado.

Antonio Damasio sentiu que tinha diante de si um Phineas Gage reincarnado, aquele jovem chefe de depósito da Nova Inglaterra que fora ferido por uma barra de ferro na mesma região cerebral um século antes, privando-o da faculdade de raciocinar. Mas naquela época primitiva da neurologia a medicina se contentou em uma análise frenológica do mal de Gage. Damasio dispunha de outros recursos, técnicos e psicológicos, para tentar elucidar o enigma daquele cérebro que, tendo conservado todas as suas habilidades de raciocínio, tinha como que perdido a razão.

Há outros detalhes: Elliott tinha alto quociente intelectual. Os testes de conhecimento e de reflexão por que passou revelaram-se normais. Assim foi com o dos "Leões de Iowa", que consiste em perguntar-se ao paciente o número de leões (ou de girafas, ou de elefantes) existentes em um dos estados da América do Norte. "Para poder responder a isso", explica Damasio, "era necessário invocar uma série de fatos não interligados e raciocinar sobre eles de maneira lógica, para enfim chegar a uma dedução plausível". Saber então que estas espécies não são "nativas" dos EUA, avaliar o número de zoológicos do estado, avaliar o número daqueles animais em cada lugar, e depois deduzir uma cifra aproximada. Elliott saiu-se perfeitamente bem na prova. Ele então podia lembrar, falar, contar, refletir. Mas quando seus interesses estavam em jogo, ele se mostrava então incapaz de decidir conscientemente.

A falha existia, uma falha terrível, escancarada. Mas onde? Perplexo, o neurologista retomou as entrevistas com seu paciente. Ao ouví-lo contar seus problemas sem parecer se importar muito, ele acreditou a princípio que Elliott, às expensas de um heróico autocontrole, escondia seus sentimentos. Mas de repente uma dúvida se insinuou. Damasio então recorreu aos métodos da psicofisiologia e desfilou aos olhos de Elliott fotografias chocantes representando casas em fogo, bairros destruídos por um terremoto, rostos de pessoas feridas em acidentes sangrentos. O próprio Elliott admitiu que não sentia nada, nada mesmo. Acabava de surgir no consultório do neurologista esta perturbadora revelação: a faculdade de raciocinar estava afetada, para não dizer destruída, por um déficit de emoção.

Elliott encarnava ao inverso os laços vitais entre coração e razão. Sua vida vivida em um mundo neutro, sem salvador nem laços, seguia com a corrente, uma vez quebrada a bússola das emoções. Como no caso dos mecanismos lógicos, o afeto testemunhava ali sua dimensão cognitiva. Ao perder sua capacidade de vibrar, Elliott perdeu também sua razão de ser. "Ele podia conhecer, mas não sentir", observa Damasio. "De maneira estranha e não calculada, ele não sofria com sua tragédia. Percebi que eu tinha mais aflição escutando os relatos de Elliott do que ele mesmo parecia ter ao passar por aquilo..." Agindo com sangue frio, incapaz de manifestar uma preferência, este paciente "à parte" abria novas portas para a neurologia ao transtornar completamente certas idéias básicas sobre o funcionamento cerebral. Uma lesão frontal, no "santo dos santos" do pensamento (se admitirmos esta forma pouco laica), poderia alterar a um só tempo os processos de raciocínio e a percepção das emoções. Não existia então nenhum "estágio superior"no cérebro, mas um anel reflexivo, de infinitas verificações (checagens) entre o intelecto e o afeto, cuja localização fluida põe em jogo tanto o neocórtex como as zonas límbicas (o hipotálamo) e o tronco cerebral, para além da medula espinhal.

A conclusão de Damasio se impunha, por mais surpreendente que fosse: o enfraquecimento da capacidade de reagir no terreno das emoções poderia ser a fonte de comportamentos irracionais. Este "contato do terceiro grau" com Elliott sem dúvida decidiu os trabalhos posteriores do pesquisador americano sobre a exploração, senão a explicação, dos fenômenos conscientes; o que ele chama, no subtítulo de seu livro O Erro de Descartes, de "razão das emoções". O distanciamento dos anos (para melhor ver) permitiu ao neurologista de Iowa City construir uma imagem afetiva do cérebro.

Tanto no animal como no homem, o comportamento se inscreve em um plano de demanda pela vida. As emoções logo remetem a um estado corporal que percebe o perigo ou o prazer. A alusão ao invólucro carnal é essencial. De Platão a Descartes, a ciência abandonou esta referência aos "mecânicos", querendo ignorar que desprovido do corpo o cérebro é apenas um órgão virtual. No século passado o psicólogo americano William James notou justamente que uma emoção muito forte não deixava qualquer material mental para representá-la. "Que sensação de medo restaria se não pudéssemos sentir nem os batimentos acelerados do coração, nem o fôlego curto, nem os lábios trêmulos, nem o desconforto no ventre? E' , para mim, impossível imaginá-la".

No pequeno animal da floresta que possui poucos conhecimentos sobre o mundo, o grito do predador provoca uma reação primária de fuga: o sistema de emoções age como uma "proto-razão". Acontece o mesmo com os seres humanos, de maneira muito amplificada. O homem dotado de seu considerável saber quer apresentar-se diversas saídas para cada situação. Os ingredientes de sua decisão parecem tão numerosos, o risco e a incerteza são tais que ele recorre, se puder, à sua experiência passada (sic) de coisas similares. Esta imagem do passado retorna a ele com a emoção da qual estava acompanhada.

O cérebro funciona então segundo "sistemas opostos" (punição-recompensa, dor-prazer), sem perder de vista o cursor que desliza sobre a linha que separa a vida da morte. Antonio Damasio fala de "marcadores somáticos" que enviam um sinal positivo ou negativo da emoção anterior. Eles podem ser conscientes (o nó no estômago) ou inconscientes. Aquele que roubou com sucesso para enriquecer poderá consagrar bastante atenção e lógica a uma má ação, sem perceber nisso o eco desfavorável, ou sem se deter. "Uma pessoa que não conhece seu passado emocional não pode discernir a importância de um ato que a liga ao futuro", explica Damasio. "Pacientes como Elliott são capazes de decidir uma coisa que consideram boas para eles no momento, sem ver que as consequências serão desastrosas dali a quinze anos". Assim foi com as especulações financeiras cujo rendimento imediato lhe pareceu prodigioso. "Pode-se achar que as pessoas desprovidas de emoção são os racionalistas. E' exatamente o contrário!" exclama o neurologista. Ainda que dê grande valor ao afetos no processo de decisão, ele não os identifica com a razão (salvo no caso do pequeno animal). In fine, o homem pode agir contra suas emoções. A renúncia à idéia de matar não é uma pequena conquista da espécie, ainda que frágil...

"Tenho dentro de mim meus tempos nublados e meus tempos claros", disse Pascal. Ele descreveu, sem saber, o mecanismo interior do espírito articulado com o corpo. Durante sua vida, uma pessoa conhece pelo menos cinco sentimentos profundos: a alegria e a tristeza, o medo, o desgosto, a cólera. Das variações podem se produzir, assim como a euforia e o êxtase, a melancolia e o desencontro, ou ainda o pânico e a timidez. E passam-se horas e dias inteiros sem que ela sinta qualquer um deles. Assim ela atravessa o oceano dos humores, bons ou maus, ou nem bons nem maus, que são o plano de fundo do corpo. O cérebro das emoções está lá: um carrossel incessante que reconduz à consciência os estados do físico, fotografando o interior como o olho olha o exterior.

As emoções nos esclarecem sobre uma paisagem íntima feita de entusiasmo ou de desencorajamento, de energia ou de fadiga, de tensão ou repouso. "O que eu sei do mundo", explica o professor de neurofisiologia Jean-Didier Vincent, "eu o soube no sofrimento ou na alegria. Este mundo é reconstruído no interior do cérebro sob a direção dos sentimentos, do vivido. Nossas representações se constróem em um banho afetivo saído de sistemas que não transportam nenhuma informação, mas são regidos do modo passional: amo ou não amo".

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Equipe COG