quarta-feira, 21 de março de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - NAUFRÁGIOS E BÚSSOLAS - parte 1/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

5. NAUFRÁGIOS E BÚSSOLAS

Nós superpusemos sobre os vasos maravilhosos imaginados por Galeno, sua rede admirável, ou rete mirabile, que ele acreditava se estender entre o cérebro e o córtex. O final do périplo nos ensinou que o encéfalo do homem palpita, se amotina e sofre, que o espírito cartesiano não está afastado nem do corpo nem dos afetos. Graças às suas funções cognitivas julgadas superiores, aquelas que lhe permitem impor-se sobre o reino animal e dominá-lo, o Homo sapiens realizou seu destino de caniço (coisa frágil) pensante, com a linguagem articulada como "agente principal de seus notáveis progressos", segundo a análise de Darwin.
Mas provavelmente Galeno teve a boa intuição: se o ser humano é uma memória, uma memória muito antiga que age, ele traz um coração em seu cérebro, que governa sua razão com tanta firmeza quanto seus sistemas lógicos de reflexão.

O doutor Denis Le Bihan, do CHU de Orsay, confessa seu sonho de um dia colocar o homem de cro-magnon sob o ímã de seu scanner para saber o que ele possuía a mais ou a menos do que o bípede moderno. Jean-Pierre Changeux, em suas conversações com o matemático Alain Connes, continua à procura dos mecanismos que fazem surgir, no lobo frontal, hipóteses complexas que certamente não eram formuladas pelos primeiros humanos. Para isto, diz Changeux, "teria sido necessário colocar o cérebro de Arquimedes sob a câmera de pósitrons alguns segundos antes que ele gritasse Eureka!"

Em lugar desses fantasmas anacrônicos, o vigia colocado no topo do mastro dos conhecimentos só tem uma débil palavra nos lábios: "Ignorabimus". Quantas destas viagens de Narciso deverá ainda o homem empreender para contemplar seu córtex como num espelho e nele ler transparentemente as razões que o impulsionam sempre a recomeçar sua procura! O professor Jean-Didier Vincent evoca esta "impaciência exploratória que mantém o cérebro em tensão por antecipação quanto à finalidade a ser alcançada". Se ele sabe trabalhar, sem conhecimento do consciente, para preencher as lacunas da memória, os buracos negros do espírito onde se perdem os nomes próprios, os rostos, e às vezes a própria vida de cada um, apostamos que ele se superará para partir em sua própria descoberta. Darwin e os naturalistas ensinaram ao bípede que ele não era uma finalidade da evolução. Se os genes mutaram, aqueles que o tornaram homem racional, é na escuta de seu órgão "superior" que ele encontrará as respostas, ou que as inventará.

No futuro, Changeux gostaria de ver eclodirem máquinas artificiais verdadeiramente inteligentes, quer dizer, dotadas de propriedades comparáveis às do cérebro humano, "autômatos humanóides que formarão uma rede amigável que facilite o trabalho intelectual" da espécie. Presidente do Comitê de Ética, ele não subestima as ameaças de "escravização deliberada do homem pelo domínio de suas funções cerebrais". Ciência sem consciência... Daí, será que fizemos flutuar e investigamos todas as Atlântidas do universo cerebral, todos os rochedos, que afloram com dificuldade, do "eu visível", considerados por Taine "incomparavelmente menores do que o eu obscuro"?

Um cérebro funcionando bem estabeleceu as representações do mundo, um vasto plano sobre o cometa feito de antecipações, de cálculos, de esperanças e de desejos. O córtex de cima, aquele das belas idéias, dos discursos na tribuna e dos afrescos da Capela Sistina, comunica-se sem parar com os estágios considerados levianamente como inferiores, aqueles que organizam as preferências e as aversões, aqueles que, mais baixo ainda, gritam de fome ou encorajam amores fecundos. Nesta profusão neuronal duplicada por mecanismos hormonais, o córtex faz o que os genes, ultrapassados pela amplitude da tarefa, deixaram a cargo de cada um: escolher. Imprimir a linguagem em seu hemisfério esquerdo, mas por que não o direito? Ser destro, mas por que não canhoto? "O passado nos impulsiona", parecia lamentar Bergson. Nada está inscrito no córtex - a não ser uma natureza humana - que a história à altura do homem não venha a corrigir, prolongar, desmentir.

Órgão central e distribuído, o cérebro capta as luzes através da retina, os sons pela cóclea do ouvido, os odores pelo bulbo olfativo. O vestíbulo, também ele alojado no ouvido, assegura o equilíbrio do conjunto. Os estados do corpo, aquilo que o professor Damasio chama de "o espírito do corpo", ele os vê como através de uma luneta ou de um periscópio instalado no hipotálamo, onde vão e vêm os humores do momento. Ele não abriga nenhum sítio integrativo, e portanto a visão do cosmos é una, indivisível, e também imprevisível: quanto mais o córtex se desenvolveu, mais seu impulso frontal lhe permitiu ganhar em complexidade, nuances, e mais a parte de indeterminismo, senão do irracional, aumentou.

Computador sem programador, configurando a si próprio e, sem repetição, a seus circuitos, liberado das crenças de "um deus na cabeça" (mesmo que o prêmio Nobel de medicina, Sir John Eccles, afirme que a alma é reunida ao feto, pelo Senhor, três semanas após a concepção...), o cérebro é uma quantidade de energia disponível a todo instante, um potencial elétrico que recruta batalhões de neurônios para missões muito especiais, encaixados com base na experiência, também apropriados à frustração das surpresas da novidade. "Os homens em estado de vigília têm um só mundo", observou Heráclito. "No sono, cada um retorna a seu próprio mundo". Como os comportamentos desejantes - por essência singulares - se opõe aos instintos gregários da espécie, a atividade cerebral participa da "individuação" cara a Alain Prochiantz. O córtex passa seu tempo criando categorias, classificando segundo modos lógicos e/ou afetivos os seres e os objetos que o cercam. O professor Damasio sugere que pela diferença entre as ferramentas, cuja representação mental está ligada ao gesto manual (bater com um martelo, cortar com um serrote), e os animais selvagens, será imprudência memorizar através de uma imagem associada à mão.

Mas acontece que os processos ultrarápidos que governam este prodígio da palavra, do reconhecimento dos outros, do pensamento livre e do gesto criativo, súbito, sem aviso, se desarrumam e morrem. Eis os continentes perdidos, os hemisférios lesados, às vezes seccionados para represar as epilepsias através do método do "split brain" (cérebro dividido). Eis os naufrágios, o olho idiotizado e a linguagem debilitada, o encerramento em um mundo que nem é mais comum nem próprio, mas um mundo sem retorno do qual o mal de Alzheimer, pela infinidade de sistemas que demole, é a ilustração extrema, de uma intensidade assombrosa. Este mesmo córtex que secreta as endorfinas para acalmar as dores do corpo (seu próprio ópio, diz Jean-Didier Vincent), este mesmo córtex, que ocupou a duração de sua vida em construir um homem, acaba assim por perdê-lo, privando-o da bússola na tempestade de seu nada.

A seu tempo um sucesso literário, depois teatral, graças à eficaz e sensível encenação de Peter Brook: O
Homem que Tomava sua Mulher por um Chapéu, o livro do neurologista americano Oliver Sacks delinea com toda a gravidade necessária o território destas existências amputadas do real pelos enganos do cérebro.
Fundamentando-se sobre esta tradição universal e ancestral em virtude da qual "os pacientes sempre contam suas histórias aos médicos", Sacks esboça o retrato de personagens desorientados, que ele afirma serem "os viajantes de países inimagináveis; países sobre os quais, ainda, não temos a menor noção".

Assim é o "marinheiro perdido", um homem de uns sessenta anos cujo relógio interno parou na época de sua juventude, quando servia na marinha americana. Se o neurologista lhe mostra o rosto em um espelho, ele não acredita, protesta, grita contra a fraude. "Vejamos, eu tenho uns 19 anos, doutor. Estarei com 20 anos no meu próximo aniversário". Sofrendo de amnésia retrógrada, afetado por uma síndrome de Korsakov (destruição da memória pelo álcool), só lhe restou a consciência de ter vivido uma vida, outrora. Todo o resto se dissipou. "Se um homem perdeu uma perna ou um olho, ele sabe que perdeu uma perna ou um olho", nota Sacks. "Mas se ele perdeu o 'si', se ele perdeu a si mesmo, ele não pode saber isso, pois não há ninguém para sabê-lo".

Ele também encontrou esta mulher, vítima de uma grave deficiência do "sentimento de sua individualidade", que não sentia mais seu corpo e vivia com a terrível impressão de ser desencarnada. "Não tenho nervos, como uma rã", confessa ela a Sacks, impotente para se construir uma representação do mundo através de sua própria existência. Um paciente hemiplégico se queixou um dia ao médico de ter encontrado em sua cama, sem que soubesse, uma perna cortada, a perna de outra pessoa. Quando ele a empurrou, "ela o seguiu, e agora estava grudada nele..." Após a perda da consciência de seu membro paralisado, ele não para de chamá-lo de "falsificação", ou de "facsímile".

Um dos casos mais inquietantes contados por Sacks é a história do professor de música que verdadeiramente tomava a cabeça de sua mulher por um chapéu. Ao final de uma consulta, escreve o neurologista, "ele segurou a cabeça de sua mulher, tentando levantá-la para colocar sobre a (sua) cabeça. (...) Sua mulher olhou-o como se para ela aquilo fosse normal". Na realidade, as áreas visuais desse professor estavam tão deterioradas que ele era incapaz de reconhecer os rostos das pessoas. Ele não tinha mais nenhuma visão de conjunto, mas se perdia - ou se reencontrava - nos detalhes: ele relacionava Churchill a seu charuto, Einstein à sua cabeleira e a seu bigode, seu próprio irmão por causa de seu típico queixo quadrado. Senão, os rostos nada lhe diziam. Seus alunos, ele os distinguia pela voz. `A diferença de Ravel, ele não sofria de nenhuma amusia, mesmo parcial. "Seus lobos temporais estavam manifestamente intactos: ele tinha um maravilhoso córtex musical", nota Oliver Sacks. Em troca, o teste da luva foi edificante. Veja uma breve passagem do diálogo que ocorreu entre o paciente - que até agora consideramos apenas um pouco distraído ou excêntrico - e seu médico.

"O que é isso? "

"Uma superfície contínua, dobrada sobre si mesma. Parece ter cinco excrescências, por assim dizer".

"Sim, você me fez uma descrição. Agora me diga o que é".

"Algum tipo de recipiente? "

"Sim, e o que ele contém? "

"Ele contém seu conteúdo! Isso poderia ser um porta-moedas, por exemplo, destinado a moedas de cinco tamanhos diferentes..."

Conhecida pelo nome de agnosia visual ( e pelo nome de prosopagnosia, com referência à perda de rostos), esta afecção grave, localizada sobretudo no hemisfério direito, ilustra o quanto uma perda seletiva da visão não altera somente as sensações, mas também o juízo (julgamento). No final do século passado, o neurologista francês Dejerine já tinha assinalado tais dificuldades. A retina está normal, os olhos também. Os pacientes podem distinguir perfeitamente um nariz, uma boca, as orelhas, sem conseguir montar o quebra-cabeça. As técnicas modernas revelaram que uma ínfima zona cerebral vizinha da V4 (a área da cor) estava afetada.

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Equipe COG