quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - UM NOVO MUNDO - parte 2/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes


Uma descoberta dessas também abre caminhos insuspeitados para a reeducação (reabilitação). Aqui se impõe uma surpreendente propriedade cerebral: a arte da economia; imaginar antes de ou ao invés de fazer.
Ultrapassar o agir pensando nele, um pensamento eficaz. "Nós somos os animais que tiveram a boa idéia de ter uma idéia em lugar das coisas", observa o psicobiólogo Roland Jouvent. O intelecto é "um meio de se adaptar, de substituir a realidade".

Portanto a linguagem não está só quando se trata de dar sentido. As imagens refletem um pensamento "para além das palavras", que poderíamos batizar de "imagin-ação". Se tivesse que realizar todos os atos que lhe passam pelo espírito, se tivesse que experimentar cada combinação do tabuleiro de xadrez antes de escolher uma delas, o homem são sem dúvida perderia a razão. O cérebro é um mundo que protege do mundo, reduzindo-o ao essencial.

Desta complexidade o pesquisador italiano Mizzolati extraiu uma família de neurônios com propriedades particulares, que também foram estudados em Lyon por Marc Jannerod e Jean Decety. Um homem segura em sua mão um amendoim, observado por um macaco. No córtex do animal se ativa um neurônio chamado "espelho". Se o macaco realizar por sua vez o mesmo ato, este neurônio intervem no que é idêntico. Fazer e ver fazer são equivalentes corticais. O que vale para o quadrúmano vale para o homem. "Se nós só tivéssemos este tipo de neurônio", explicita Marc Jannerod, "estaríamos mergulhados em um estado de esquizofrenia, incapazes de decidir quem, dentre nós e o outro, tinha realizado o movimento". Mas estes neurônios "espelhos" têm uma utilidade cognitiva e social considerável. E' na codificação das representações dos outros em ação no interior de nosso cérebro, (NT - engrama: figura de memória latente na consciência) ao "engramarmos" estas imagens, que nos compreendemos mutuamente. Possuir o reflexo de um outro realizando uma tarefa precisa é, a um só tempo, aprendizagem e partilha de uma experiência oculta em cada um e ainda assim reconhecida assim que surge no cotidiano. Jean Cocteau teria amado este espelho que reflete.

Não está longe o tempo em que os pesquisadores só dispunham, para resolver o enigma cerebral, de materiais post mortem ou de pacientes lesados. Com as imagens modernas, são as pessoas em plena posse de suas faculdades que são expostas ao ímã ou ao foco da câmera de pósitrons. As faculdades superiores do córtex humano, a partir de agora, são o alvo, e sua descoberta é uma fonte inesgotável de espanto.

Em 1973, Semir Zeki chocou seus pares ao afirmar que o cérebro tratava a informação visual por vias especializadas e geograficamente separadas, à maneira de uma agência de correios subdividida em guichês. "Fui recebido friamente", lembra o professor de neurobiologia do British College, de Londres. "Nossa imagem do mundo é unificada. Pensar que ela provém de processos distintos vai ao encontro da experiência de cada instante". Laureados com o prêmio Nobel de medicina em 1981 por seus trabalhos sobre os mecanismos corticais da visão, os pesquisadores de Harvard David H. Hubel e Torsten-Niels Wiesel não constataram qualquer segregação celular no seio da V1, a área primária que recebe as imagens da retina.
Semir Zeki se apoiou em trabalhos realizados com macacos, os símios sob certo "ponto de vista" mais próximos do homem.

Foi em 1989 que a câmera de pósitrons lhe deu razão. Colocada diante de figuras geométricas coloridas como quadros de Mondrian, uma pessoa ativava uma pequena região do córtex occipital exterior à área V1, que Zeki denominou área da cor, ou V4. Um quadro de pontos luminosos em preto e branco piscando aleatoriamente deixava a V4 apagada, mas estimulava uma outra pequena região V5, com preferência pelo movimento e indiferente ao colorido. Zeki também distinguia a V3, a área da forma, e a V2 situada situada ao redor da V1, desempenhando o papel seletivo de "peneira" entre a área primária da visão e as áreas especializadas. Esta arquitetura, admitida por Hubel e Wiesel, é rica em ensinamentos: uma minúscula lesão occipital pode subtrair a visão das cores (acromatopsia) sem tirar a visão, ou privar uma pessoa da percepção dos movimentos (akinetopsia) ou da faculdade de reconhecer rostos familiares (prosopagnosia), à maneira do "homem que tomava sua esposa por um chapéu", examinado pelo neurologista Oliver Sacks.

Semir Zeki decompôs as sequências visuais do cérebro. Em 80 milésimos de segundo o homem percebe primeiro a cor, depois a forma, depois a profundidade, e enfim o movimento. Na totalidade, umas trinta áreas de extensão variável estão implicadas na visão, especializadas na memória das palavras escritas, dos rostos.
Um quadro abstrato de Mondrian faz funcionar V1 e V4. Uma natureza morta, onde as cores reproduzem a percepção do real, ativa além disso zonas do lobo temporal e do hipocampo, um "órgão" muito antigo do cérebro que dá conta das semelhanças. Aqui o olho compara o que ele sabe do mundo com o vestígio do que ele já viu. As cores que enganam - à maneira dos amarelos que representam morangos azuis - abrem outra via, dorsal, do córtex visual. "Constata-se uma diferença neurológica entre a arte abstrata e a figurativa", explica Semir Zeki. Certas zonas parecem dominar: assim, a estimulação de V4 implica na desconexão de V5. O neurologista tira daí uma regra: a cor torna o movimento vago.

Esta "concorrência" lembra uma desventura mnêmica que aconteceu com Freud. Em um trem que o leva à Itália o psicanalista evoca com seu vizinho de assento um mestre italiano que ele é incapaz de nomear, do qual apenas se representa um afresco em que, num canto, o artista pintou a si mesmo. Pela descrição do quadro, seu vizinho reconheceu Signorelli. Mas assim que Freud percebeu o nome do mestre o afresco e seu rosto apagaram-se irremediavelmente de seu espírito.

A referência à arte não é gratuita. Diante do retrato de Ticiano na National Gallery, de Londres, a arrogância do homem salta aos olhos. "O seu cérebro e o de Ticiano se comunicaram sem palavras porque a personalidade retratada corresponde a uma expressão conhecida do rosto", explica Semir Zeki. "O cérebro é o local de nascimento da obra". Segundo ele, alguns artistas descobriram inadvertidamente as leis da neurologia, particularmente Mondrian, com suas linhas orientadas horizontais e verticais, que refletem, com singular premonição, a organização das células superpostas na área V3, que se dedica à forma. Alexander Calder "tocou" a área V5 com seus famosos móbiles, tendo até o cuidado de suprimir as cores das figuras para "evitar confusão". Apenas os cubistas, aos olhos de Zeki, fracassaram neurologicamente "ao abandonarem o ponto de vista e ao iluminarem-no para que fosse reconstituído o que eles achavam que era o real como ele é, e não como o cérebro o inventa. O Homem do Violão de Picasso, sob seus múltiplos aspectos, é irreconhecível", conclui o professor britânico, admitindo ainda que é necessário "sacrificar mil verdades aparentes para perceber o essencial de um objeto".

Nossa organização neuronal também nos permite conservar a constância das cores, saber que uma laranja é laranja ao sol do meio dia e ao crepúsculo. Aqui o córtex utiliza uma lógica que inibe a percepção primária.
Este papel corretor se manifesta para desconectar as reações automáticas. Na obra O Cérebro em Ação, o pesquisador do Inserm Stanislas Dehaene evoca a tarefa de Stroop, cujo protocolo data de 1935: uma pessoa lê uma lista de palavras e deve dizer a cor da tinta que foi usada para escrever cada palavra.
"Observa-se um efeito inibitório considerável", constata Dehaene, "já que a própria palavra é um nome de cor que entra em conflito com a cor a ser denominada. Por exemplo, a palavra 'vermelho' escrita com tinta verde". As regiões cerebrais implicadas nas representações semânticas - área de Wernicke - se ativam assim espontaneamente. O cérebro procura de maneira "irreprimível" o sentido da palavra. Depois aparece uma grande atividade no córtex cingular (NT - giro cíngulo do córtex límbico) anterior, uma zona que, segundo o pesquisador de Lyon Olivier Koenig, "parece crítica na atividade de inibição da resposta automática do sentido veiculado pela palavra".

Foi nesta mesma região préfrontal que a câmera de pósitrons descobriu os neurônios da memória de trabalho, de curto prazo, úteis para reter um número de telefone ou de um quarto de hotel. Quanto às lembranças mais profundas, elas estão codificadas nas proximidades das áreas primárias da cor (para o amarelo da banana) ou do movimento (para o galope do cavalo).

Os meios modernos de investigação cerebral não colocaram em questão as localizações seculares da linguagem nas zonas de Broca (produção de fonemas) e de Wernicke (compreensão). Se a fala - compreendida aqui a fala interior - vem do hemisfério esquerdo, também é o caso das chamadas tarefas metalinguísticas: achar os verbos, rimas, juntar letras e sílabas, compará-las. Uma pessoa não treinada a quem peçamos que associe verbos a objetos mobiliza três regiões "esquerdas". Mas, uma vez familiarizada com este exercício, ela só mobiliza uma região insular comum aos dois hemisférios e especializada na simples leitura. Ao aprender, o cérebro remodela seus circuitos segundo a lei da economia. Isto acontece de outro modo na aprendizagem do movimento: a mão esquerda do violinista se vale de uma representação cortical superior à do não-violinista.

O teste dos kana e dos kanji é um clássico da subutilização das áreas neuronais. Os japoneses utilizam dois sistemas de escrita. Os kanji, ou ideogramas chineses, e os kana, que surgiram no século 19, uma linguagem silábica que recorre menos à imagem. Ainda que o hemisfério esquerdo seja dominante nos dois casos, a leitura dos kanji exige o recurso às regiões parietal e temporal direitas, sinal de um esforço visual. Outra curiosidade: a audição de palavras abstratas não estimula as mesmas zonas do hemisfério esquerdo que a audição de palavras concretas.

Em um estudo publicado na revista Nature em abril de 1996, Antonio Damasio e sua esposa Hanna também identificaram áreas que participam de um processo da linguagem, exteriores às regiões clássicas de Broca e Wernicke. "Creio que existem três sistemas", explica Damasio. "O primeiro é conceitual: são nossas idéias sobre as coisas ou as pessoas. O segundo trata das palavras ligadas a estes conceitos: uma mesa, um leão, uma pessoa... Entre os dois intervém um mecanismo de mediação que vai do conceito à palavra e da palavra ao conceito. Tratam-se de regiões "diplomáticas' diferentes conforme se trate de uma pessoa, um animal, ou uma ferramenta, como uma chave de parafuso ou um martelo".

Damasio circunscreveu estas regiões por meio da tomografia por emissão de pósitrons. Situadas no córtex sensório-motor, grandemente distribuídas pelo hemisfério esquerdo do cérebro (frontal e temporal, mas também parietal e occipital), seu papel é decisivo. Elas permitem reconstruir "no ato" o nome de um amigo com quem se cruza na rua, ao fornecerem os fonemas, os sons que compõe seu patronímico. Em troca, a voz deste amigo ao telefone ativa as mesmas regiões intermediárias, que, por sobre os fragmentos adormecidos, reconstróem imediatamente uma imagem, um rosto. Para Damasio, cada pessoa abriga em si uma cidade de Brigadoon, que a lenda (escocesa) diz despertar uma vez a cada 100 anos, e permanece adormecida no intervalo. "Esta visão do cérebro contradiz o estruturalismo, que confunde as palavras e as coisas", prossegue Damasio. "A realidade é diferente: as coisas são as coisas, independentemente das palavras que as possam qualificar". (NT - uma referência direta ao livro As Palavras e as Coisas, do estruturalista Michel Foucault).
Como prova, seus exames de pacientes lesados nas regiões cerebrais "diplomáticas" da linguagem. Diante da foto de Kennedy, um responde: "Não sei quem é". Ele perdeu o conceito. Outro diz: "E' o presidente que foi assassinado", sem poder recordar o nome.

Por seu lado, o psicolinguista Jacques Mehler observou que entre os bilíngues perfeitos a segunda linguagem se acavala exatamente na área da primeira língua. Ao contrário, um bilíngue esforçado, que tropeça nas palavras e conserva forte sotaque, "aloja" sua segunda língua à distância da língua materna. Citemos ainda a particularidade dos adultos japoneses incapazes de apreender os sons "ra" e "la" ( à diferença dos bebês nipônicos, que conservam esta faculdade até os seis meses, antes de serem dela privados pela influência do meio exterior). Durante a segunda guerra mundial os americanos, sabedores desta lacuna, exploraram-na desavergonhadamente ao codificarem suas mensagens secretas à base de "la" e "ra".

Outras linguagens não deixam de supreender. Ao observar o cérebro em pleno cálculo, Stanislas Dehaene descobriu que a comparação entre números inteiros, a multiplicação e a subtração solicitam regiões distintas do córtex. "Quando se comparam quantidades, uma pequena região parietal direita entra em atividade", escreveu ele. "A multiplicação só ativa a região parietal esquerda. A subtração ativa simultaneamente as duas regiões, com uma extensão e uma intensidade muito pronunciadas". Se o reconhecimento de palavras - e de números escritos por extenso - se situa exclusivamente no hemisfério esquerdo, os algarismos arábicos são apreendidos pelos dois hemisférios. Mas só o cérebro esquerdo possui as tabuadas de adição e de multiplicação, e sabe calcular e anunciar os resultados em voz alta enquanto o cérebro direito fica mudo.

A eletroencefalografia, que capta a atividade cerebral no nível dos milésimos de segundo, testemunha as trocas ultrarápidas entre os dois hemisférios: "Se a multiplicação for simples", explica Dehaene, "como 2x3, a ativação parietal é fortemente lateralizada à esquerda e de curta duração. Se, ao contrário, a multiplicação for menos familiar, como 8x7, então ela parece desatracar do hemisfério esquerdo antes de se estender até a região parietal direita durante muitas centenas de milésimos de segundo".

As bases neuronais manifestas da curiosa mathematica podem-se reunir aquelas, não menos dispersas, da música. Os trabalhos de Justine Sergent, no Instituto Neurológico de Montréal, revelaram esta configuração particular do cérebro: a perda da linguagem verbal - afasia - não implica necessariamente em uma perda da linguagem musical - amusia. O organista francês Jean Langlais, deste modo, continuou a compor ao mesmo tempo em que se tornou incapaz de redigir ou de ler frases depois de um acidente vascular cerebral. A amusia é, por sua parte, seletiva: ela pode se traduzir por uma incapacidade de escrever notas sobre uma partitura ou de tocar peças ao mesmo tempo em que as faculdades auditivas estão intactas.

Em 1933, Maurice Ravel confidenciou à sua amiga Valentine Hugo: "Nunca mais realizarei minha Jeanne D'Arc. Esta ópera está lá, na minha cabeça, eu a conheço, mas nunca a escreverei. Acabou, não posso mais escrever minha música". Sobre a partitura de Don Quichotte à la Dulcinée, sua escrita estava tão irreconhecível que uma pessoa de suas relações acreditou ter sido redigida "por uma mão amiga". Agráfico, apráxico (por imperícia, jogou uma pedra no rosto de alguém ao tentar fazer ricochetes sobre a água), Ravel sofria de uma amusia parcial: as notas que compreendia, que sentia vibrarem nele, não as podia traduzir em atividade motora, tangivelmente criadora. "A competência musical que lhe restou pode ser comparada à de um melômano ou de um crítico musical bastante ciente de que nunca teve à sua disposição o conhecimento técnico que constitui a ferramenta básica de um compositor", escreveu Justine Sergent. Num teste sob a câmera de pósitrons ( e IRM) dez pianistas profissionais destros que deviam ler em silêncio, escutar e depois tocar um coral de Bach, ela relacionou as zonas estimuladas: uma grande rede neuronal que ocupava os quatro lobos cerebrais, nas regiões adjacentes à da linguagem. A exemplo das áreas visuais, cada território possui uma especialidade musical própria.

Antonio Damasio pensa em lançar no ano que vem (1999) um programa neurológico para explorar, com dois intérpretes europeus, a relação íntima entre a música e o cérebro. Será que ele quer ler os pensamentos carregados de emoção? "Não, isto não me interessa. Estamos perto de compreender a biologia do espírito, seus mecanismos. Mas a experiência pessoal é absolutamente particular, e espero que continue assim. Ela constitui o último refúgio".

Vamos desligar a câmera de pósitrons, serenar o campo magnético. O cérebro está visto. Resta todo o desconhecido ligado ao órgão do conhecimento, este aparelho sem igual.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - UM NOVO MUNDO - parte 1/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

2. UM NOVO MUNDO
Onde o cérebro trabalha, o débito sanguíneo aumenta. Seria necessário então apenas seguir este fio vermelho para chegar às regiões da linguagem e da visão, do cálculo ou da música. Graças aos rastreadores radioativos e à ressonância magnética as imagens modernas mostram o córtex que fala, conta, lembra, erra ou se perturba. Uma introspecção que permite apreender melhor a complexidade do universo cerebral sem violar a intimidade do pensamento.
Em seu romance Da Terra à Lua, Jules Verne imaginou um personagem intrépido chegando ao astro da noite a bordo de um foguete de alumínio. A exploração moderna do cérebro se vale dessa visão hermética e afunilada. Para comprovar o infinito de sua galáxia mental, uma constelação de cem bilhões de neurônios unidos por milhares de bilhões de micro-espaços, para que o homem se perceba como maior do que é, contendo um universo na desmedida de suas faculdades de pensamento, de movimento, de sofrimento, ele teve que se fazer pequeno, muito pequeno. E imóvel. Estender-se em um tubo estreito onde reina o campo magnético. Sem mover a cabeça, controlado por periscópios, guiado por ecos de navegação, sob a visão de lentes prismáticas, à espera do caos visual e sonoro que comanda a IRM (imagem funcional de ressonância magnética), palavra mágica que revela o espírito e suas regiões corticais.
Será que um dia leremos pensamentos? Pai desta tecnologia, juntamente com o pesquisador Seigi Ogawa, o doutor Denis Le Bihan, neuroradiologista do hospital de Orsay, parece confuso com sua própria análise: "Nos últimos anos, eu respondia: não. Hoje, acredito que sim". Infinito debate que divide gerações de usuários de jaleco branco. Marc Jannerod, diretor do novo Instituto de Ciências Cognitivas de Lyon, descarta definitivamente esta hipótese: "Poderemos saber se uma pessoa realiza ou não uma atividade mental. Em qualquer dos casos, não teremos acesso ao conteúdo de seu pensamento". Jean-Pierre Changeux, o patrono das neurociências no Instituto Pasteur, mostra-se perplexo e menos decidido: "Jannerod é contra por princípio ou por método?" A seus olhos, Denis Le Bihan está no caminho certo: "Se você ativar em uma pessoa os objetos de memória que representam um rosto, um animal, um instrumento, as diferentes áreas do lobo temporal vão se iluminar, você saberá em que pensa a pessoa".
Palavras francas que testemunham as paixões e proibições que cercam os estados mentais puros. Por sobre a artilharia das imagens, o espírito, que acreditávamos irredutível aos meios mecânicos, já tem condições de se dar conta, de ser explicado. O que disse Salret, o alienista da Salpêtrière? "Quando a própria cabeça for transparente como cristal", disse ele em 1920, "não perceberemos nenhuma diferença entre quem pensa, delira ou sonha". E o que disse Ivan Pavlov, o homem que fazia babarem os cães ao toque de uma campainha, tomado em 1927 por uma iluminação profética: "Se pudéssemos observar através da caixa craniana", escreveu ele, "e se a zona de excitabilidade ótima estivesse iluminada, descobriríamos em um ser pensante o deslocamento incessante de pontos luminosos, cercado por uma região de sombra mais ou menos espessa, ocupando todo o resto dos hemisférios".
Aqui estamos nós.
A centelha vem do sangue. E' uma longa história que começa em 1890, depois que dois fisiologistas ingleses, Roy e Sherrington, estabeleceram uma ligação entre a atividade cerebral e o fluxo sanguíneo. Quanto mais for solicitada uma área do córtex, mais ela recebe hemoglobina carregada de oxigênio e glicose, os combustíveis da matéria cinzenta. Era suficiente seguir o fio vermelho até o cérebro. O homem levou um século para chegar a este objetivo. Vêmo-lo (putz!) mais curioso do que nunca, surpreso com sua audácia e bem deliberado em levar a termo sua investigação sobre esse "fósforo meio úmido que serve de previsão para a hipótese de não estar vivo".
O eletroencefalograma, com seus eletrodos colocados sobre o escalpo do paciente, fornece em tempo real o estado ativo elétrico dos neurônios, sem permitir que se localizem com exatidão as zonas de trabalho. Nos anos 70 a escanografia, ou scanner de raios X, permitiu que fossem feitos os primeiros mapas funcionais do cérebro. Mas às imagens faltavam os contrastes para que se pudesse entrar na intimidade das células. A década de 90 presenciou a ida pelos ares dos últimos empecilhos, com a tomografia por emissão de pósitrons (TEP), depois o ímã da IRM funcional, no campo magnético trinta mil vezes superior ao da Terra.
Nos dois casos quem fala é o sangue. A primeira técnica é ligeiramente invasiva. Injeta-se no braço de um voluntário um isótopo ou rastreador radioativo cuja meia-vida - período de radiação - é breve: 123 segundos para o oxigênio 15. Durante este curto intervalo a pessoa examinada deve se entregar a uma tarefa cognitiva ou motora precisa, ler palavras, escutá-las, fazer oposição entre o polegar e os outros dedos. Ao se desintegrar durante sua viagem em direção ao cérebro o isótopo emite um pósitron que logo se choca com uma partícula irmã, um elétron. Deste encontro no "pico" nascem dois fótons, dois grãos de luz que são filmados por uma câmera de pósitrons disposta como os anéis de Saturno à volta do crânio do indivíduo. Os detectores, muito sensíveis aos raios, funcionam como circuitos coincidentes: religados aos pares, eles só assinalam uma ocorrência se dois fótons se propagarem em sentido inverso. Um cálculo complexo permite então a reconstituição das imagens do corte do cérebro que reflete sua atividade. As emissões de fótons culminam ali onde o débito sanguíneo for mais forte. Daí a zona solicitada é deduzida, quando o indivíduo fala, calcula, escuta uma mensagem ou movimenta um dedo.
Esta técnica tem limites: ela transmite o que vê com um segundo de atraso, sem obter a velocidade com que o cérebro estabelece ou modifica suas conexões, dezenas ou centenas de milisegundos. Assim, a TEP padece de uma ligeira imprecisão: as áreas identificadas estão a muitos milímetros das áreas realmente em ação. A IRM corrige estes defeitos sem eliminá-los completamente. Mais próxima da cronometria cerebral, mais fiel na localização das zonas de trabalho, ela por sua parte não exige nenhuma picada no braço, e assegura longas sequências de cenários. O afluxo de sangue oxigenado nas partes ativas do córtex perturba o campo magnético local. Os sinais magnéticos emitidos depois do bombardeamento de ondas de rádio permitem que se façam as mais fiéis representações, até hoje, do cérebro pensante.
O uso clínico dessas imagens parece ser primordial. Uma exploração pré-operatória informa o cirurgião sobre o lugar preciso onde a extração de um tumor não fará o paciente sofrer qualquer tipo de paralisia. 
Também vale para as pessoas acometidas de epilepsia. A secção parcial do lobo temporal pode provocar perda de linguagem, a afasia. Até hoje os médicos não tinham outro recurso além do teste traumatizante de Wada: com um catéter enfiado em uma carótida, o paciente recebia um barbitúrico durante um minuto em seu suposto hemisfério da linguagem e passava por uma prova de produção ou reconhecimento de palavras. Mas o método carecia de viabilidade. O barbitúrico se difundia para além das áreas visadas. Assim que o doutor Le Bihan coloca uma menina epilética de 10 anos sob seu magneto e lhe pede que cite nomes de brincadeiras, de alimentos ou de hábitos, ele sabe que as respostas serão indiscutíveis e o teste de Wada inútil. Verdadeira erupção cerebral, a epilepsia se traduz por um débito sanguíneo aumentado e quase simultâneo em diversas regiões do cérebro. "Mas existe mesmo uma zona que se estimula antes das outras, um foco epilético. A IRM deverá localizá-la", especifica o facultativo de Orsay.
Tudo certo, as doenças degenerativas do sistema nervoso, como as doenças de Alzheimer ou de Parkinson, indicam antes de mais nada a necessidade de um conhecimento melhor do genoma humano. Portanto as imagens obtidas dos sinais precursores das afecções do cérebro têm interferência pequena, como a da esclerose em placas. O simples movimento de um dedo da mão direita ativa uma região do hemisfério esquerdo do cérebro. Ele também estimula os núcleos cinzentos envolvidos no refinamento do movimento. 
Veredito da IRM: estes núcleos são inoperantes nos parkinsonianos.
Na última primavera, uma equipe de pesquisadores de Saint Louis (Missouri) identificou um nódulo profundo, seis centímetros atrás da fossa nasal, o córtex préfrontal articulado, como o local presumido da melancolia, também chamada de depressão. As imagens da câmera em algumas posições mostraram que esta zona era pouco ativa em uma amostra de pacientes depressivos, em comparação com a (zona) das pessoas "normais". 
Graças à maior precisão da IRM, os cientistas de Saint Louis constataram que os tecidos cerebrais do córtex préfrontal articulado dos doentes era 50 % menos espesso! Das numerosas experiências realizadas com esquizofrênicos fez-se surgir uma hipofrontalidade - portanto uma atividade enfraquecida do córtex frontal onde se sediam as funções superiores: reflexão, antecipação, coerência do discurso ou do cálculo. 
Sobretudo, as alucinações visuais ou auditivas ativam as áreas primárias da visão e da audição, como se se tratassem de fatos realmente percebidos. Incapaz de discriminar entre mundo exterior, o produto de sua memória ou o fruto de sua imaginação, o cérebro dos esquizofrênicos cria para si seu próprio mundo.
Mas devemos acreditar naquilo que vemos? Onde se situam as fronteiras da normalidade? A TEP e a IRM funcional produzem seus preciosos dados segundo o princípio da subtração: o córtex da pessoa é "escaneado" ou "magnetizado" em repouso, e depois em atividade. A diferença entre os dois registros dá informações sobre as áreas implicadas. Resta a sombra de uma dúvida. O que significa "em repouso" para um órgão dotado de uma vida sui generis?
Um paciente deve olhar para diversos pontos luminosos vermelhos. Sua área visual primária, chamada V1, se ativa. Depois de alguns exercícios semelhantes, o médico lhe pede para não mais fixar os pontos vermelhos, e para fechar os olhos e se lembrar deles. Surpresa: a mesma área V1 se ilumina em seu córtex, sem que a retina tenha recebido qualquer mensagem. A questão vale a pena ser recolocada: devemos acreditar no que vemos se a imaginação provoca uma reação semelhante no cérebro? "V1 serve de tela", diz Denis Le Bihan. 
"Projetamos nela um vídeocassete ou um programa exterior". As pessoas "em repouso" às vezes são instadas a sonhar com um céu azul ou com uma noite estrelada. "Como as imagens podem ativar o córtex visual primário, mesmo esta condição não é anódina".
Um cenário semelhante ocorre no córtex motor: a pessoa testada deve movimentar os dedos de uma das mãos, um de cada vez, e depois ela efetua gestos similares "na cabeça", sem fazer qualquer movimento. 

Também aqui regiões idênticas do córtex são estimuladas. O mental training dos desportistas recebe sua consagração neurológica. Entre agir e imaginar a ação não existe nenhuma diferença cortical. O golfista, o corredor, o tenista, que se concentram sobre a tarefa a cumprir, decompondo cada gesto, animam em si mesmos uma espécie de simulador de bordo. O pesquisador do Inserm Jean Decety relata as incríveis conclusões de dois pesquisadores americanos que compararam a aprendizagem psíquica e física com relação à força do punho. "O treinamento mental produz os mesmos efeitos sobre o aumento da força muscular que o treinamento físico. Estes resultados só podem ser interpretados através da ativação dos circuitos motores centrais. Pois nenhuma contração dos músculos foi observada durante o treinamento mental".

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - UM MUNDO IMAGINADO - parte 2/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes


O doutor Harlow havia ouvido falar em frenologia, até que em 1848 lhe foi apresentado um jovem contramestre da Nova Inglaterra que uma barra de ferro de 6 quilos, 1,10 m de comprimento (com um ponta afiada de 18 cm), e com 3 cm de diâmetro, havia literalmente perfurado o todo de seu crânio, atravessando a parte frontal de seu cérebro para depois cair a alguns metros de distância. Phineas Gage, este era seu nome, ignorava que tinha se tornado um caso bastante discutido da neurologia e das lesões cerebrais. Uma hora após o acidente, devido ao embuchamento malfeito de uma mina explosiva, Gage, que tinha perdido um olho, falava normalmente e contava sua desventura sem dificuldade aparente. Nada lhe faltava de suas faculdades intelectuais, nem de seu vocabulário, suas lembranças, nem mesmo de suas capacidades motoras.
Levou algum tempo para que as pessoas próximas a ele constatassem que, por outro lado, sua personalidade havia mudado brutalmente. "Gage não era mais Gage", nota Antonio Damasio em O Erro de Descartes. O equilíbrio entre as faculdades intelectuais e suas pulsões animais encontrava-se abolido. O doutor Harlow, assim, observou que Phineas Gage apresentava "humor instável, irreverente, proferindo às vezes grosseiras blasfêmias, o que nunca fazia antes, e manifestando pouco respeito por seus amigos". Este novo retrato conflitava com suas qualidades de "antes": "Fino e hábil nos negócios, capaz de energia e perseverança na execução de todos os seus planos de ação". Despedido de seu trabalho, Gage termina sua triste carreira como atração do circo Barnum de NY, onde ele contava seu acidente sem jamais largar a barra de ferro que o havia perfurado, explorando sua cabeça como Phileas Fogg (havia explorado) a Terra, cercado de jovens com pele de elefante e de mulheres monstruosas.
As descrições do doutor Harlow foram estudadas por um discípulo de Gall. Segundo ele a barra de ferro tinha passado "pela vizinhança da Benevolência e na parte anterior da Veneração", duas "localidades" caras à frenologia. "Seu órgão de Veneração foi lesado", precisou o observador. " É por isto, sem dúvida, que não parava de blasfemar". Mais seriamente, a patologia de Phineas Gage sugeriu um novo olhar sobre as funções cerebrais e suas afecções geográficas. O intelecto de um homem, sua linguagem, podem permanecer intactos ao mesmo tempo em que ele é privado do senso moral, do bem e do mal. "Ele tinha perdido uma característica própria do homem", conclui Antonio Damasio: "Fazer projetos para seu futuro enquanto ser social".
Nesta época ignorava-se um aspecto importante do cérebro, sua capacidade de funcionar como um todo, o neocórtex, local do pensamento mais evoluido, recebendo sem cessar sinais emocionais provenientes do "cérebro fluido", descrito pelo professor dee neurofisiologia Jean-Didier Vincent. Um anacronismo impõe-se aqui, antes de chegarmos a Broca, contemporâneo de Gall, e à localização da fala. No começo dos anos 70, Mac Lean apresentou sua teoria dos três cérebros superpostos dentro da caixa craniana: um cérebro reptílico, profundo, vindo do balbucio da espécie, acantonado nas tarefas primárias, beber, comer, reproduzir-se. Um cérebro sentimental, ou límbico, (descrito em sua época por Paul Broca), vazado por emoções e por uma memória genérica dos movimentos, do que faz sofrer, do que dá prazer. Um neocórtex que pensa, antecipa, calcula e age. "Como o limbo da mitologia cristã", escreve Jean-Didier Vincent, "o sistema límbico é o intermediário entre o céu neocortical e o inferno reptiliano. As representações do mundo exterior e interior se superpõe ali".
O avanço das neurociências mostrou as falhas desta trindade cerebral. O homem não estratificou seu intelecto no decurso da evolução, e a imagem de um São Jorge abatendo o dragão que se esconde em nós, ou do motor colocado sobre o arado, presta conta imperfeitamente da arquitetura cortical. "Não existe lei da recapitulação", explica ainda Jean-Didier Vincent, "através da qual seríamos sucessivamente girino, réptil, camundongo, macaco e homem. Mas o cérebro reptiliano repercute no córtex (com a passagem de neurotransmissores químicos, serotonina, adrenalina) e nosso córtex frontal toma as decisões emocionais. A tessitura é tal que não podemos separar o afetivo da memória e do intelecto".
Tal verdade estava contida inteiramente no acidente de Phineas Gage, ocorrido há um século e meio. Foi necessário um tempo para que o homem, "entrincheirado em seu pensamento", admitisse que o animal que havia nele não estava relegado aos baixos estágios de seu encéfalo, mas afluia na quintessência do seu "eu". Pois, se não se trata de uma recapitulação, o cérebro humano é uma síntese dos mundos passados. "Nós somos um produto da evolução das espécies", admite Alain Prochiantz em seu ensaio Em que Pensam os Calamares, e compartilhamos um ancestral comum com o polvo. Mesmo se a estrutura do nosso córtex e a invenção da linguagem permitem que escrevamos sobre os polvos, e não o inverso, resulta desse parentesco que as outras espécies animais, aqui compreendidos os invertebrados, têm alguma coisa a nos ensinar sobre o pensamento, ainda que consciente". Percebemos o eco de Darwin: "A estrutura corporal do homem carrega a marca indelével de uma origem inferior". O vestígio deste passado evolutivo subsiste também nas rugas do invólucro mental.
Fim do anacronismo. Na metade do século 18 ninguém saberia dizer com precisão onde se encontra o pensamento. Será que ele foi colocado no cérebro como doces são colocados em um pote? , interroga-se o mesmo Prochiantz, zombando da teoria antiga de Cabanis, segundo a qual o córtex secreta o espírito como o fígado secreta a bílis, de maneira endócrina, sem construção particular, sem... pensar nele. Quando o anatomista e cirurgião Paul Broca apresenta o fruto de suas descobertas em 1861, o cérebro finalmente vai falar. Diante da Sociedade de Antropologia, Broca presta contas sobre a autópsia que fez em um certo Eugène Leborgne, mais conhecido nos anais médicos pela alcunha de "Tan-Tan", a única sílaba que ele sabia pronunciar, além da blasfêmia "Pelo amor de deus!", que escapava bizarramente de sua boca se ele percebia, desesperado, que ninguém o estava entendendo.
A comunicação de Broca é conhecida sob o título de "Perda da fala, apatetamento crônico e destruição parcial do lobo anterior esquerdo do cérebro". A partir de uma lesão do tamanho de um ovo de galinha na terceira circunvolução frontal do hemisfério esquerdo, "Tan-Tan" era incapaz de "coordenar os movimentos próprios da linguagem articulada". Esta afasia motora parecia confirmar que o espírito não era um todo, mas um conjunto fragmentado. Broca marcou um ponto para as teses "localizacionistas". A área da linguagem, batizada de área de Broca, consagrava uma zona precisa do cérebro como sede da fala, distinta da memória semântica e visual das palavras, que continuou intacta. Mas o ensinamento obtido deste cérebro atingido deixava uma perplexidade: Broca tinha localizado uma função ou um déficit? Uma lesão neste preciso local arruinaria a totalidade de um processo ou somente um eixo isolado, crucial mas não único?
Foi preciso esperar pelas representações modernas das imagens médicas por ressonância magnética para que se detectassem outras áreas "associativas" implicadas na linguagem, ainda que a área de Broca, com o passar do tempo e o crivo da experiência, tenha conquistado o direito de existir. Ela é o primeiro ponto fixo sobre o mapa incerto de um "estado central flutuante". Ela dá o ponto de partida para um cérebro assimétrico onde o hemisfério esquerdo fala, calcula, analisa e raciocina, enquanto o hemisfério direito reconhece rostos e formas, situa o corpo no espaço, elabora um pensamento "para além das palavras" e vibra com as obras musicais.
Sem simplismo. Em 1874 o neurologista alemão Karl Wernicke descobre um novo sítio, mais interno, no lobo temporal esquerdo, implicado na expressão oral. "Ele demonstrou que as imagens auditivas verbais pareciam estar localizadas em um outro banco de memória, diferente daquele que continha as imagens dos movimentos articulatórios", escreveu Israel Rosenfield, professor de história das idéias na City University, NY. "A descoberta de dois sítios anatômicos distintos favoreceu o desenvolvimento da teoria imaginada por Broca, segundo a qual havia dois tipos de memória. (...) A área de Wernicke era o sítio das 'representações auditivas das palavras', quer dizer, dos registros de cada palavra individual. Daí ele deduziu que as duas zonas estavam ligadas por um feixe de fibras". Assim foram identificadas as duas grandes disfunções da linguagem, a afasia motora de Broca, encarnada por "Tan-Tan" e sua blasfêmia desesperada, e a afasia sensorial de Wernicke, na qual os doentes derramavam um turbilhão de palavras incoerentes das quais não sabiam mais o sentido.
Mas ninguém tinha ainda idéia da complexidade das conexões neuronais do frágil homem, rede pensante. 
Diante da opacidade de sua "caixa preta", o olhar esbarrava nas circunvoluções mudas da matéria. Se o escalpelo mostrava a espessura inegável das superposições, a ausência de homogeneidade dos tecidos e seu caráter aparentemente indolor, ao final do século o cérebro continuava sendo uma fortaleza bem protegida. A geografia cerebral deixava a desejar. É certo que as cissuras de Sylvius e de Rolando vinham delimitar claramente o lobo frontal e o lobo parietal. Na década de 1850 os anatomistas Leuret e Gratiolet representaram magnificamente os lobos occipital e insular, o corpo caloso e os ventrículos, o tronco cerebral e seus prolongamentos, bulbo e medula espinhal. Os que viajavam por este limbo não tinham um mapa que mostrasse "em relevo" a imperfeita rotundidade do encéfalo e a aferição exata dos dois hemisférios sob a casca (craniana). O desconhecido significava o incognoscível? Uma máquina só poderia revelar seu segredo a uma máquina de ordem superior?
O homem confrontado com seus limites não cessou de querer explicar sua própria aventura navegando de "ismos em ismos": o sensualismo de Locke e de Condillac, na linha platônica ("Não há nada no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos"); o behaviorismo watsoniano, reduzindo as atividades do comportamento ao binômio "estímulo-resposta" e excluindo toda representação cerebral interna; o cognitivismo encarnado pelo linguista americano Noam Chomsky, supondo, por sua vez, que o indivíduo é dotado desde o nascimento de uma armadura mental que lhe permite adquirir e manipular saberes; o ineísmo (NT - interiorismo), variante do anterior, que se recusa a considerar o córtex como uma (estrutura de) cera mole e virgem obliterada pelo (que lhe vem do) exterior durante sua vida. (Um conteúdo pré-existiria à experiência, como parece testemunhar a detecção de sinais de orientação no cerebelo de gatinhos de menos de oito dias, que jamais haviam abrido os olhos).
Continente dividido, o cérebro do homem lhe fornece uma representação do mundo ("imago mundi"), ao mesmo tempo que lhe permite agir sobre o mundo ("anima mundi"). Desdobrado, com as pregas desfeitas, um córtex humano ocupa uma área de 2 metros quadrados, uma verdadeira imensidade se comparado ao cerebelo desdobrado de um macaco "superior" comedor de frutas. (O do comedor de folhas é ainda menor: suas faculdades são em menor número, portanto seu córtex está menos interligado...)
Foi em 1919 que o doutor Korbinian Brodmann, sintetizando as conquistas da anatomia e da microscopia, propôs o primeiro mapa detalhado do cérebro humano, enumerando 52 áreas distintas relacionadas referencialmente pela diferença de arquitetura das células nervosas. Abandonando as ingênuas nomenclaturas de Gall, ele objetivou mais sobriamente as zonas da linguagem, da visão, da motricidade ou da audição, e também os espaços associativos cujos modos de funcionamento permaneciam obscuros.
Útil, o exercício foi insuficiente. As representações de Brodmann não poderiam pretender a universalidade, porque dois encéfalos jamais são iguais, sulcos e circunvoluções variando de um indivíduo para outro, e (são) também únicos e pessoais (aqui compreendidos os gêmeos univitelinos) como as impressões digitais. Por isso os cirurgiões da época tomavam como referência o Atlas de Taleyrach, um médico de Sainte-Anne que tentou montar um cérebro padrão por meio de um sistema proporcional, uma espécie de "imagens médias". 
Mas como escreveram os professores Bernard Mazoyer e John Belliveau, "a referência (era) a de um único cérebro utilizado para a elaboração deste atlas: o hemisfério direito de uma velhinha, dissecado após sua morte e mergulhado em formol".
A exploração deveria continuar. Ela prosseguiu mais para o centro, mais para o coração do cérebro. Em princípio em escala microscópica para se descobrir uma camada de neurônios diferentes, formando não "uma rede contínua como os canais da Camargue vistos de avião", observa Jean-Pierre Changeux, mas um conjunto de unidades independentes "em relação de contiguidade, como as árvores de uma floresta ou os ladrilhos (peças) de um mosaico", cada célula dialogando com as outras em um espaço evidenciado pelo fisiologista inglês Sherrington em 1897: a sinapse. Para ir até o fim, era necessário energia elétrica. 

Precisamente, depois de testes com eletrodos em cérebros de cães e coelhos, os médicos berlinenses Fritsch e Hitzig, e depois o assistente de fisiologia da Royal Infirmary de Liverpool, de nome Caton, revelaram a atividade elétrica do cérebro. Melhor: apareceu uma ligação entre as funções corticais precisas e os fenômenos elétricos. A visão cerebral tornara-se confusa. Da eletroencefalografia rudimentar às imagens modernas de ressonância magnética, a técnica estava pronta para apresentar um novo mundo aos olhos do homem.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - UM MUNDO IMAGINADO - parte 1/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes


1. UM MUNDO IMAGINADO

O homem ereto é um velho mundo em marcha. Tudo o que ele é, tudo o que ele foi, tudo o que ele sabe dele e do resto está na casca enrugada - o córtex - de uma grande noz que tem 1.300 g e muitos neurônios, de matéria cinza pouco afável - de "terra e de água" , dizia Aristóteles - por onde passa, ligeiro ou fatal, o pensamento.

Se sobreviveu à noite de suas origens, erigido sobre suas duas pernas, as mãos enfim livres e as mandíbulas levadas a dimensões mais modestas do que as mandíbulas do seu irmão símio, o Homo sapiens deve isto ao impulso espetacular do seu lobo frontal, luz de seu cerebelo. Uma luz fechada na penumbra de sua caixa craniana, como Diógenes e sua lanterna à procura do homem, da alma.

Deste clarão escondido nasce o mistério. Uma palavra pouco valorizada nos escritos científicos, que a ela sempre preferiram a idéia de um desconhecido acessível por força das experiências, das teorias, e das hipóteses validadas sobre as mesas de dissecação, escalpelo na mão e nada de religião na cabeça. O homem não tinha um deus alojado no encéfalo, nem também um pequeno ser em miniatura, o homúnculo dos alquimistas, representado nas figuras antigas como um anão que vigia a partir do celeiro cortical os sinais que vêm do corpo e articulam movimentos e reações. A questão em suspenso era vasta como o mundo: a massa do cérebro, com suas estranhas circunvoluções, suas dobras complexas - dobraduras -, seus sulcos e cissuras, seus dois hemisférios unidos por um corpo caloso à maneira dos continentes que não ficaram à deriva, suas múltiplas glândulas, negros humores e cinzentos apêndices semelhantes aos escaleres de um balão, esta matéria, então, poderia "razoavelmente" abrigar o espírito?

Aqui começa a viagem. Viagem íntima e viagem de descoberta, daqueles que, uma vez soltas as amarras, não estão perto de terminá-la. Como nas grandes expedições ao Novo Mundo, havia navios, aqueles que Galeno acreditava descobrir entre o coração do homem e seu crânio, a "rete mirabile", ou rede admirável, que o célebre médico de Alexandria, após tê-la extirpado de mamíferos com seu bisturi, atribuía injustificadamente à espécie humana. A seus olhos a torrente (sic) sanguínea transportava a energia vital queimada pela caldeira cardíaca até a base inferior do cérebro, onde ela se transformava em princípios espirituais. Durante treze séculos, até mais, o homem escolheu não escolher. "Diga-me onde mora o amor, no coração ou na cabeça?", pergunta suplicante um herói do Mercador de Veneza, de Shakespeare.

Depois da Renascença, portanto, as dissecações de animais e de cadáveres, e o entusiasmo pela anatomia, revelaram muitos segredos do órgão superior do homem. "Leonardo da Vinci, entre 1504 e 1507, no Hospital de Santa Maria Nova, de Florença, apresenta pela primeira vez um modelo em cera dos ventrículos cerebrais e mostra um projeto preciso das circunvoluções", escreve Jean-Pierre Changeux no livro O Homem Neuronal. Mas ainda não se trata da estrada real para a verdade "cefalocêntrica", que coloca o cérebro na origem da expressão humana. Precisamos voltar a Aristóteles para descobrir o erro de direcionamento. O filósofo entrou pelo caminho errado ao privilegiar a tese "cardiocentrista", aquela que dá ao coração que bate o monopólio da inteligência e das paixões, sendo o cérebro na melhor das hipóteses apenas um refrigerador precoce. Também Homero se perdeu nessa corrente, ao sabor aleatório das viagens e das miragens: a América não foi dada a Colombo ao primeiro golpe...

Dezoito séculos antes de nossa era, os egípios perceberam a direção certa ao examinarem feridas do crânio, descobrindo "as rugas semelhantes àquelas que se formam sobre o cobre em fusão". Um papiro recuperado desta época longínqua testemunha o espanto do cirurgião, fielmente transcrito pelo escriba, diante de um ferimento na cabeça que provocou dificuldades motoras. Partes do corpo tão distantes "comunicam-se"? O homem da arte notou a perda da fala causada por um esmagamento da têmpora, sem tirar daí qualquer conclusão. Os antigos egípcios, por prudência ou por crença (religiosa), evitavam renunciar à primazia do coração.

Foram necessários alguns gregos de gênio, Demócrito, Hipócrates, Herófilo e Galeno, para abalar a visão aristotélica. Demócrito qualifica o cérebro de "cidadela do corpo", de "guardião do pensamento e da inteligência". Hipócrates afirmou que "se o encéfalo estiver irritado, a inteligência se desarruma". Três séculos antes da nossa era, Herófilo deu um passo decisivo ao reconhecer os nervos do movimento, que ele distingue dos nervos do "sentimento"(hoje batizados de sensóriomotores). A chamada dissecação "abjeta" do cérebro fresco de criminosos permite que ele relacione medula espinhal e cerebelo.

Quanto a Galeno, que a ilusão da "rede admirável" não desacreditou ( são os erros fecundos), colocou a nu uma realidade animal aplicável, desta vez, ao homem: a lesão profunda de um ventrículo cerebral afeta o corpo e a atividade mental. O cérebro, in fine, supremo comandante do destino de cada um, rei sagrado do pensamento, senhor dos gestos e das emoções por mais de vinte séculos, ainda tem que lutar com a transmissão de idéias tingidas de sentimentalismo para que o coração tenha suas próprias razões. A partir de então a causa é entendida: é a chapa do eletroencefalograma que marca e assinala o fim de um homem.

Mas a matéria, esta matéria vil e delimitada pelo espaço e pelo tempo, pode engendrar o espírito livre, imaterial e, acrescentam os pais da Igreja, eterno? Eis René Descartes e seu dualismo. Na parte 4 do
Discurso sobre o Método, o filósofo cria uma oposição prometida à posteridade entre a res extensa - a substância com extensão (ainda que limitada ao invólucro carnal) - e a res cogitans - a substância pensante -, entre o corpo e o espírito. "Com uma ausência de clareza que não lhe era costumeira", escreve o prêmio
Nobel de medicina Gerald Edelman, "Descartes declarou que as interações entre a res cogitans e a res extensa ocorriam na glândula pineal", uma glândula singular, envolta no encéfalo, e é justamente em sua característica única que Descartes se apoia para eleger o local da inteligência: "As outras partes de nosso cérebro são duplas, e nós temos um só pensamento de uma mesma coisa ao mesmo tempo".

Ao privar o espírito de seu suporte físico, o filósofo separa a ciência de uma perspectiva esclarecedora: a pesquisa biológica, neurológica e fisiológica dos estado mentais, como se as engrenagens de um mecanismo estivessem limitadas ao corpo. "Aqui se situa o erro de Descartes", explica Antonio Damasio, professor de neurologia na universidade de Iowa. "Ele instaurou uma separação categórica entre o corpo, feito de matéria, dotado de dimensões, movido por mecanismos, e o espírito, não-material, sem dimensão, e isento de qualquer mecanismo. Ele afirmou que as mais delicadas operações do espírito não tinham nada a ver com o funcionamento de um organismo".

Ao tirar o pensamento do corpo ( e La Mettrie por sua vez escreve sobre isso: "A alma é apenas um termo vão; temos que concluir temerariamente que o homem é apenas uma máquina"), Descartes preparou o terreno para um pensamento mecanicista que se obstinou, até época recente, em dividir o cérebro em peças, a imagem do computador substituindo a do refrigerador. Como se o espírito fosse um conteúdo lógico informático com o qual o córtex se contenta em "funcionar". Diretor do laboratório do desenvolvimento e da evolução do sistema nervoso na Escola Normal Superior, Alain Prochiantz vê no erro de Descartes um avatar de sua época: "Ele entrou no cérebro pelo olho, no momento em que foram inventadas as lupas ópticas. A visão era a rainha das sensações, e ele percebeu que havia uma máquina dentro do homem. Creio que sua percepção teria sido diferente se ele tivesse abordado o cérebro pelo odor ou pelo tato".

O tom está dado. Se o homem é um espírito puro ("Cogito, ergo sum", ao qual reage em vão o "Sou, logo penso" do escritor espanhol Miguel de Unamuno), seu corpo é uma máquina autônoma. Vindo ao apoio desse dualismo o mecanismo centralizador (em tecelagem) de Vaucanson e os robôs da fábrica Renault, a idéia de que o irracional e o indeterminismo saem do campo científico e só podem ser apreendidos pela psicanálise, o inconsciente, o superego... A doutrina da Igreja sobre a imaterialidade da alma está salva. Os teólogos não quiseram considerar a evocação da glândula pineal, por Descartes, como uma tentativa, ainda que pouco convincente, de localizar o espírito.

A viagem sobre o manto cortical prosseguiu, mas a tocha mudou de mãos. Chegara a hora de um médico anatomista vienense que teve durante a vida um renome (sulfuroso) comparável ao de Sigmund Freud. Ele se chama Franz-Joseph Gall, e passa a maior parte de seu tempo apalpando cérebros para revelar com isso "as faculdades inatas felizes e infelizes" do homem. Durante o dualismo triunfante deste final do século 18, Gall escandaliza ao colocar o espírito nos limites da caixa craniana. O cérebro passava por um continente compacto e anônimo, uma espécie de terra incognita paradoxal que, para dar ao homem uma representação do mundo exterior, evitava esclarecimentos sobre sua própria arquitetura mental.

Gall divide a superfície do crânio em 27 partes, que são igualmente funções psíquicas e motoras batizadas como principalidades. Já não se navega mais a olho nu: Gall inscreve os nomes sobre o cinza e o branco do mapa cerebral. A nomenclatura peca por uma certa inocência: lêem-se entre as regiões identificadas a combatividade e o instinto de destruição, o espanto e a imitação, a aptidão para ser consciencioso, a prudência e o amor próprio, o senso do maravilhoso, que Broussais, cirurgião do exército de Napoleão, disse que era particularmente desenvolvido em Moisés!

Para conduzir bem sua exploração sem abrir o crânio, Gall procura bossas e intumescências na superfície do couro cabeludo. Sua hipótese inicial é simples: as qualidades do homem deformaram seu cérebro e deixaram sua marca na abóbada de seu crânio. Imagem inversa das crateras lunares, onde aflora a bossa dos meteoros... Em Viena, Weimar e Paris, Gall é um prodígio e um demônio. (Pois) ele não ataca o dualismo ao ousar determinar uma residência para o espírito, recusando que um ser superior, uma boa alma, governe os sentidos e a consciência?

A flecha do tempo dissipará o segredo: Gall se enganou ao imputar funções fantasistas às depressões do encéfalo. (Ele apenas acertou na nomeação das áreas da fala e da memória das palavras na região frontal do cérebro). Mas sua intuição continua pioneira: se é impossível localizar sobre o córtex a avareza ou o gosto pela rapina, Gall abriu o frutífero caminho das localizações cerebrais. Ao representar o cérebro como uma federação de órgãos especializados, ele não somente recolocou o espírito em seu (devido) lugar, ele sobretudo alimentou no homem, agrimensor de suas próprias incertezas, a vontade pascaliana de conhecer a si mesmo, de colocar palavras nas zonas de sombra, de nomear, logo, de compreender. Sua tentativa tinha seus limites: ao subdividir o cérebro Gall não tinha idéia de que os seus centros funcionais não eram verdadeiramente centros, mas sistemas complexos e interdependentes, placas ou cartões neuronais ligados entre si pelo jogo combinado da genética, da memória da espécie, da experiência, do tesouro individual.

continua....

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

NEUROCIÊNCIA - parte 2/2

Linguagem e outras funções de alto nível

A área de Broca e área de Wernicke

Em 1861,o neurologista francês Paul Broca identificou um paciente que era quase totalmente incapaz de falar e tinha uma lesão nos lobos frontais, o que gerou questionamentos sobre a existência de um centro da linguagem no cérebro. Mais tarde, descobriu casos nos quais a linguagem havia se comprometido devido a lesões no lobo frontal do hemisfério esquerdo. A recorrência dos casos levou Broca a propor, em 1864, que a expressão da linguagem é controlada por apenas um hemisfério, quase sempre o esquerdo. Esta visão confere com resultados do procedimento de Wada, no qual um hemisfério cerebral é anestesiado. Na maioria dos casos, a anestesia do hemisfério esquerdo, mas não a do direito, bloqueia a fala. A área do lobo frontal esquerdo dominante que Broca identificou como sendo crítico para a articulação da fala veio a ser conhecida como área de Broca.(BEAR, 2002)
Em 1874, o neurologista Karl Wernicke identificou que lesões na superfície superior do lobo temporal, entre o córtex auditivo e o giro angular, também interrompiam a fala normal. Essa região é atualmente denominada área de Wernicke. Tendo estabelecido que há duas áreas de linguagem no hemisfério esquerdo, Wernicke e outros começaram a mapear as áreas de processamento da linguagem no cérebro e levantaram hipóteses acerca de interconexões entre córtex auditivo, a área de Wernicke, a área de Broca e os músculos requeridos para a fala.
"O modelo neurolingüístico de Wernicke considerava que a área de Broca conteria os programas motores de fala, ou seja, as memórias do movimentos necessários para expressar os fonemas, compô-los em palavras e estas em frases. A área de Wernicke, por outro lado, conteria as memórias dos sons que compõem as palavras, possibilitando a compreensão." (LENT, 2002, p. 637) Assim, se essas duas áreas fossem conectadas, o indivíduo poderia associar a compreensão das palavras ouvidas com a sua própria fala.
Atualmente, o modelo de Wernicke teve que ser corrigido quando se observou que pacientes com lesões bem restritas à porção posterior do giro temporal superior (a área de Wernicke) apresentavam na verdade uma surdez lingüística e não uma verdadeira afasia de compreensão. A área de Wernicke seria, então, responsável pela identificação das palavras e não da compreensão do seu significado.
Distúrbios da fala e da compreensão
Damos o nome de afasia a alguns dos distúrbios da linguagem falada causados por acidentes vasculares cerebrais na sua fase aguda. Entretanto, nem todos os distúrbios da linguagem podem ser chamados de afasia. São chamados de afasia apenas aqueles que atingem regiões realmente responsáveis pelo processamento da linguagem e não distúrbios do sistema motor, do sistema atencional, e outros que seriam apenas coadjuvantes do processo. Ao contrário de um doente que não consegue falar devido a paralisia de um nervo facial, os portadores de afasia podem apresentar problemas de linguagem sem ter qualquer problema no funcionamento muscular facial.
Segundo Lent (2002), as afasias são classificadas em afasia de expressão, de compreensão e de condução, de acordo com os sintomas do paciente e com a região cerebral atingida.
A afasia de Broca é também chamada de afasia motora ou não-fluente, já que as pessoas têm dificuldade em falar mesmo que possam entender a linguagem ouvida ou lida. Pessoas com esse tipo de afasia têm dificuldade em dizer qualquer coisa, fazendo pausas para procurar a palavra certa (anomia). A marca típica da afasia de Broca é um estilo telegráfico de fala, no qual se empregam, principalmente, palavras de conteúdo (substantivos, verbos, adjetivos), além da incapacidade de construir frases gramaticalmente corretas (agramatismo). É provocada por lesões sobre a região lateral inferior do lobo frontal esquerdo.
A afasia de compreensão ou afasia de Wernicke atinge uma região cortical posterior em torno da ponta do sulco lateral de Sylvius do lado esquerdo. Os pacientes não conseguem compreender o que lhes é dito. 
Emitem respostas verbais sem sentidos e também não conseguem demonstrar compreensão através de gestos. Apesar de possuir uma fala fluente, ela também não tem sentido pois não compreendem o que eles mesmos dizem. Enquanto na afasia de Broca, a fala é perturbada, mas a compreensão está intacta, na afasia de Wernicke, a fala é fluente, mas a compreensão é pobre.
A afasia de condução é provocada por lesão do feixe arqueado, feixes que conectam a área de Broca com a área de Wernicke. Os pacientes seriam capazes de falar espontaneamente, embora cometessem erros de repetição e de resposta a comandos verbais.
Outros distúrbios
Afasia é apenas uma das desordens que resulta de lesões do cérebro. Neurologistas catalogaram um grande número de desordens. Abaixo temos uma pequena lista de algumas delas:
•    Alexia: inabilidade adquirida de compreender a linguagem escrita.
•    Agrafia: inabilidade adquirida de produzir linguagem escrita apesar da presença da linguagem oral, da leitura e de controle de movimentos normal
•    Apraxia: inabilidade de ter movimentos propositais apesar da compreensão normal das instruções, da força, do reflexo e da coordenação normais.
•    Agnosia visual: perda da habilidade de reconhecer ou identificar a presença de objetos, apesar nas funções visuais estarem intactas. Uma forma específica da agnosia visual foi registrada como propagnosia, inabilidade de reconhecer faces.
•    Síndrome da negligência: a tendência a ignorar coisas numa região particular do espaço ignorando o módulo sensorial responsável pelos estímulos provenientes daquela região. Pacientes com uma forma dessa síndrome chamada síndrome da negligência unilateral ignoram as informações provenientes do lado esquerdo ou direito do corpo e podem até esquecer de barbear essa parte do rosto ou de vestir esse lado do corpo.
A especialização dos hemisférios
Apesar do nosso cérebro ser divido em dois hemisférios não existe relação de dominância entre eles, pelo contrário, eles trabalham em conjunto, utilizando-se dos milhões de fibras nervosas que constituem as comissuras cerebrais e se encarregam de pô-los em constante interação. O conceito de especialização hemisférica se confunde com o de lateralidade (algumas funções são representadas em apenas um dos lados, outras no dois) e de assimetria (um hemisfério não é igual ao outro).
Segundo Lent (2002), o hemisfério esquerdo controla a fala em mais de 95% dos seres humanos, mais isso não quer dizer que o direito não trabalhe, ao contrário, é a prosódia do hemisfério direito que confere à fala nuances afetivas essenciais para a comunicação interpessoal. O hemisfério esquerdo é também responsável pela realização mental de cálculos matemáticos, pelo comando da escrita e pela compreensão dela através da leitura. Já o hemisfério direito é melhor na percepção de sons musicais e no reconhecimento de faces, especialmente quando se trata de aspectos gerais. O hemisfério esquerdo participa também do reconhecimento de faces, mas sua especialidade é descobrir precisamente quem é o dono de cada face. Da mesma forma, o hemisfério direito é especialmente capaz de identificar categorias gerais de objetos e seres vivos, mas é o esquerdo que detecta as categorias específicas. O hemisfério direito é melhor na detecção de relações espaciais, particularmente as relações métricas, quantificáveis, aquelas que são úteis para o nosso deslocamento no mundo. O hemisfério esquerdo não deixa de participar dessa função, mas é melhor no reconhecimento de relações espaciais categoriais qualitativas. Finalmente, o hemisfério esquerdo produz movimentos mais precisos da mão e da perna direitas do que o hemisfério direito é capaz de fazer com a mão e a perna esquerda (na maioria das pessoas). Veja a Figura 2.2:

Figura 2.2: Especialização dos hemisférios. (LENT, 2002)

Implicações nas Ciências Cognitivas
Existem redundâncias consideráveis no sistema nervoso. A existência de processamento paralelo é amplamente aceita na neurociência e acredita-se que ele seja necessário devido a rapidez e complexidade do processamento da informação no cérebro das criaturas vivas. O poder da computação paralela pode ser observado nos modernos computadores seriais que demoram muito mais que o cérebro humano para processar informações visuais. Nos últimos anos, reconheceu-se que computadores com processamento paralelo são necessários para acelerar o processamento de imagens, aproximando-o da velocidade do cérebro humano.
Esse é um dos caminhos pelo qual a neurociência pode ajudar as ciências cognitivas. A psicologia cognitiva tem se esforçado para modelar as atividades intelectuais com elementos que interajam numa maneira neurologicamente plausível. Esses modelos estão ajudando a mostrar como a cognição pode ser estruturada através dos princípios básicos de operação da mente.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

NEUROCIÊNCIA - parte 1/2

A neurociência é o estudo da realização física do processo de informação no sistema nervoso humano animal e humano. O estudo da neurociência engloba três áreas principais: a neurofisiologia, a neuroanatomia e neuropsicologia.

A neurofisiologia é o estudo das funções do sistema nervoso. Ela utiliza eletrodos para estimular e gravar a reação das células nervosas ou de área maiores do cérebro. Ocasionalmente, separaram as conexões nervosas para avaliar os resultados.

A neuroanatomia é o estudo da estrutura do sistema nervoso, em nível microscópico e macroscópico. Os neuroanatomistas dissecam o cérebro, a coluna vertebral e os nervos periféricos fora dessa estrutura.

A neuropsicologia é o estudo da relação entre as funções neurais e psicológicas. A principal pergunta da neuropsicologia é qual área específica do cérebro controla ou media as funções psicológicas. O principal método de estudo usado pelos neuropsicólogos é o estudo do comportamento ou mudanças cognitivas que acompanham lesões em partes específicas do cérebro. Estudos experimentais com indivíduos normais também são comuns.

Estrutura e funcionamento do sistema nervoso

Observando a estrutura do sistema nervoso, percebemos que eles têm partes situadas dentro do cérebro e da coluna vertebral e outras distribuídas por todo corpo. As primeiras recebem o nome coletivo de sistema nervoso central (SNC), e as últimas de sistema nervoso periférico (SNP). É no sistema nervoso central que está a grande maioria das células nervosas, seus prolongamentos e os contatos que fazem entre si. No sistema nervoso periférico estão relativamente poucas células, mas um grande número de prolongamentos chamados fibras nervosas, agrupados em filetes alongados chamados nervos.

Os nervos (conjunto de neurônios) podem ser divididos em nervos que levam informação para o SNC e nervos que levam informação do SNC. Os primeiros são chamados fibras aferentes e os últimos de fibras eferentes. As fibras aferentes enviam sinais dos receptores (células que respondem ao estímulo sensorial nos olhos, ouvidos, pele, nariz, músculos, articulações) para o SNC. As fibras eferentes enviam sinais do SNC para os músculos e as glândulas.

Os neurônios são formados por três partes: a soma, os axônios e os dendritos. A parte central, corpo celular ou soma, contém o núcleo celular. Pode-se observar que a soma possui grande número de prolongamentos, ramificando-se múltiplas vezes como pequenos arbustos, são os dendritos. É através dos dendritos que cada neurônio recebe as informações provenientes dos demais neurônios a que se associa. O grande número de neurônios é útil a célula nervosa, pois permite multiplicar a área disponível para receber as informações aferentes. Saindo da soma também, existe um filamento mais longo e fino, ramificando-se pouco no trajeto e muito na sua porção terminal, é o axônio. Cada neurônio tem um único axônio, e é por ele que saem as informações eferentes dirigidas às outras células de um circuito neural.

A região de contato entre um terminal de fibra nervosa e um dendrito ou o corpo (mais raramente um outro axônio) de uma segunda célula, chama-se sinapse, e constitui uma região especializada fundamental para o processamento da informação pelo sistema nervoso. Na sinapse, nem sempre, os sinais elétricos passam sem alteração, podem ser bloqueados parcial ou completamente, ou então multiplicados. Logo, não ocorre apenas uma transmissão da informação, mas uma transformação durante a passagem.

A transmissão sináptica pode ser química ou elétrica. Na sinapse elétrica, as correntes iônicas passam diretamente pelas junções comunicantes (região de aproximação entre duas células) para as outras células. A transmissão é ultra-rápida, já que o sinal passa praticamente inalterado de uma célula para outra. Na sinapse química, a transmissão do sinal através da fenda sináptica (região de aproximação entre duas células, bem maior que as junções comunicantes) é feita através de neurotransmissores. A sinapse química pode ser exitatória, quando ocorre um aumento no estímulo recebido pelo neurônio pós-sináptico, ou inibitória, quando ocorre uma diminuição do estímulo no neurônio pós-sináptico. São essas transformações ocorridas durante a sinapse que garantem ao sistema nervoso a sua enorme diversidade e capacidade de processamento de informação

Uma das melhores maneiras de perceber a influência dos neurotransmissores na cognição é observando a quantidade de drogas cujo efeito provêm da modificação da atividade dos neurotransmissores, como a nicotina.

Plasticidade

Plasticidade é a capacidade do sistema nervoso alterar o funcionamento do sistema motor e perceptivo baseado em mudanças no ambiente.

Estudos comprovam a hipótese sobre o desenvolvimento neural e a aprendizagem na qual funções particulares de processamento de informação são controladas por grupos especiais de neurônios, mas quando uma dessas funções fica inutilizada, os neurônios associados a ela passam a controlar outra função.

Por exemplo, se os neurônios que normalmente recebiam estímulos do olho esquerdo pararem de receber esse estímulo, eles se tornariam responsáveis pelos estímulos do olho direito. O inverso também é verdadeiro, quando as funções neurais são limitadas, os neurônios podem passar a controlar novas funções.

No entanto, nem sempre esse processo ocorre. A plasticidade é mais comum em crianças.

Memória de curto e longo prazo

Um dos conceitos mais importantes dessa área é a distinção entre memória de curto e longo prazo. Uma razão para acreditar nessa distinção é que, algumas vezes depois de um severo golpe na cabeça, uma pessoa pode ser incapaz de lembrar eventos que aconteceram antes do golpe (amnésia retrógrada), mas continuaria lembrando dos eventos que ocorreram bem antes. A fragilidade das memórias recentes sugeri que elas estavam num estado fisiológico diferente das memórias mais antigas. Uma outra razão para essa distinção é que nós somos capazes de lembrar um pequeno número de itens que nós acabamos de guardar na memória, mas podemos lembrar uma grande quantidade de informação de um passado distante. Esses fatos sugerem que a memória de curto prazo e a memória de longo prazo podem ter propriedades físicas distintas.

Memória de Curto Prazo (MCP): Capaz de armazenar informações por períodos de tempo um pouco mais longos, mas também de capacidade relativamente limitada.

Memória de Longo Prazo (MLP): Capaz de estocar informações durante períodos de tempo muito longos, talvez até indefinidamente.