quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - UM NOVO MUNDO - parte 2/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes


Uma descoberta dessas também abre caminhos insuspeitados para a reeducação (reabilitação). Aqui se impõe uma surpreendente propriedade cerebral: a arte da economia; imaginar antes de ou ao invés de fazer.
Ultrapassar o agir pensando nele, um pensamento eficaz. "Nós somos os animais que tiveram a boa idéia de ter uma idéia em lugar das coisas", observa o psicobiólogo Roland Jouvent. O intelecto é "um meio de se adaptar, de substituir a realidade".

Portanto a linguagem não está só quando se trata de dar sentido. As imagens refletem um pensamento "para além das palavras", que poderíamos batizar de "imagin-ação". Se tivesse que realizar todos os atos que lhe passam pelo espírito, se tivesse que experimentar cada combinação do tabuleiro de xadrez antes de escolher uma delas, o homem são sem dúvida perderia a razão. O cérebro é um mundo que protege do mundo, reduzindo-o ao essencial.

Desta complexidade o pesquisador italiano Mizzolati extraiu uma família de neurônios com propriedades particulares, que também foram estudados em Lyon por Marc Jannerod e Jean Decety. Um homem segura em sua mão um amendoim, observado por um macaco. No córtex do animal se ativa um neurônio chamado "espelho". Se o macaco realizar por sua vez o mesmo ato, este neurônio intervem no que é idêntico. Fazer e ver fazer são equivalentes corticais. O que vale para o quadrúmano vale para o homem. "Se nós só tivéssemos este tipo de neurônio", explicita Marc Jannerod, "estaríamos mergulhados em um estado de esquizofrenia, incapazes de decidir quem, dentre nós e o outro, tinha realizado o movimento". Mas estes neurônios "espelhos" têm uma utilidade cognitiva e social considerável. E' na codificação das representações dos outros em ação no interior de nosso cérebro, (NT - engrama: figura de memória latente na consciência) ao "engramarmos" estas imagens, que nos compreendemos mutuamente. Possuir o reflexo de um outro realizando uma tarefa precisa é, a um só tempo, aprendizagem e partilha de uma experiência oculta em cada um e ainda assim reconhecida assim que surge no cotidiano. Jean Cocteau teria amado este espelho que reflete.

Não está longe o tempo em que os pesquisadores só dispunham, para resolver o enigma cerebral, de materiais post mortem ou de pacientes lesados. Com as imagens modernas, são as pessoas em plena posse de suas faculdades que são expostas ao ímã ou ao foco da câmera de pósitrons. As faculdades superiores do córtex humano, a partir de agora, são o alvo, e sua descoberta é uma fonte inesgotável de espanto.

Em 1973, Semir Zeki chocou seus pares ao afirmar que o cérebro tratava a informação visual por vias especializadas e geograficamente separadas, à maneira de uma agência de correios subdividida em guichês. "Fui recebido friamente", lembra o professor de neurobiologia do British College, de Londres. "Nossa imagem do mundo é unificada. Pensar que ela provém de processos distintos vai ao encontro da experiência de cada instante". Laureados com o prêmio Nobel de medicina em 1981 por seus trabalhos sobre os mecanismos corticais da visão, os pesquisadores de Harvard David H. Hubel e Torsten-Niels Wiesel não constataram qualquer segregação celular no seio da V1, a área primária que recebe as imagens da retina.
Semir Zeki se apoiou em trabalhos realizados com macacos, os símios sob certo "ponto de vista" mais próximos do homem.

Foi em 1989 que a câmera de pósitrons lhe deu razão. Colocada diante de figuras geométricas coloridas como quadros de Mondrian, uma pessoa ativava uma pequena região do córtex occipital exterior à área V1, que Zeki denominou área da cor, ou V4. Um quadro de pontos luminosos em preto e branco piscando aleatoriamente deixava a V4 apagada, mas estimulava uma outra pequena região V5, com preferência pelo movimento e indiferente ao colorido. Zeki também distinguia a V3, a área da forma, e a V2 situada situada ao redor da V1, desempenhando o papel seletivo de "peneira" entre a área primária da visão e as áreas especializadas. Esta arquitetura, admitida por Hubel e Wiesel, é rica em ensinamentos: uma minúscula lesão occipital pode subtrair a visão das cores (acromatopsia) sem tirar a visão, ou privar uma pessoa da percepção dos movimentos (akinetopsia) ou da faculdade de reconhecer rostos familiares (prosopagnosia), à maneira do "homem que tomava sua esposa por um chapéu", examinado pelo neurologista Oliver Sacks.

Semir Zeki decompôs as sequências visuais do cérebro. Em 80 milésimos de segundo o homem percebe primeiro a cor, depois a forma, depois a profundidade, e enfim o movimento. Na totalidade, umas trinta áreas de extensão variável estão implicadas na visão, especializadas na memória das palavras escritas, dos rostos.
Um quadro abstrato de Mondrian faz funcionar V1 e V4. Uma natureza morta, onde as cores reproduzem a percepção do real, ativa além disso zonas do lobo temporal e do hipocampo, um "órgão" muito antigo do cérebro que dá conta das semelhanças. Aqui o olho compara o que ele sabe do mundo com o vestígio do que ele já viu. As cores que enganam - à maneira dos amarelos que representam morangos azuis - abrem outra via, dorsal, do córtex visual. "Constata-se uma diferença neurológica entre a arte abstrata e a figurativa", explica Semir Zeki. Certas zonas parecem dominar: assim, a estimulação de V4 implica na desconexão de V5. O neurologista tira daí uma regra: a cor torna o movimento vago.

Esta "concorrência" lembra uma desventura mnêmica que aconteceu com Freud. Em um trem que o leva à Itália o psicanalista evoca com seu vizinho de assento um mestre italiano que ele é incapaz de nomear, do qual apenas se representa um afresco em que, num canto, o artista pintou a si mesmo. Pela descrição do quadro, seu vizinho reconheceu Signorelli. Mas assim que Freud percebeu o nome do mestre o afresco e seu rosto apagaram-se irremediavelmente de seu espírito.

A referência à arte não é gratuita. Diante do retrato de Ticiano na National Gallery, de Londres, a arrogância do homem salta aos olhos. "O seu cérebro e o de Ticiano se comunicaram sem palavras porque a personalidade retratada corresponde a uma expressão conhecida do rosto", explica Semir Zeki. "O cérebro é o local de nascimento da obra". Segundo ele, alguns artistas descobriram inadvertidamente as leis da neurologia, particularmente Mondrian, com suas linhas orientadas horizontais e verticais, que refletem, com singular premonição, a organização das células superpostas na área V3, que se dedica à forma. Alexander Calder "tocou" a área V5 com seus famosos móbiles, tendo até o cuidado de suprimir as cores das figuras para "evitar confusão". Apenas os cubistas, aos olhos de Zeki, fracassaram neurologicamente "ao abandonarem o ponto de vista e ao iluminarem-no para que fosse reconstituído o que eles achavam que era o real como ele é, e não como o cérebro o inventa. O Homem do Violão de Picasso, sob seus múltiplos aspectos, é irreconhecível", conclui o professor britânico, admitindo ainda que é necessário "sacrificar mil verdades aparentes para perceber o essencial de um objeto".

Nossa organização neuronal também nos permite conservar a constância das cores, saber que uma laranja é laranja ao sol do meio dia e ao crepúsculo. Aqui o córtex utiliza uma lógica que inibe a percepção primária.
Este papel corretor se manifesta para desconectar as reações automáticas. Na obra O Cérebro em Ação, o pesquisador do Inserm Stanislas Dehaene evoca a tarefa de Stroop, cujo protocolo data de 1935: uma pessoa lê uma lista de palavras e deve dizer a cor da tinta que foi usada para escrever cada palavra.
"Observa-se um efeito inibitório considerável", constata Dehaene, "já que a própria palavra é um nome de cor que entra em conflito com a cor a ser denominada. Por exemplo, a palavra 'vermelho' escrita com tinta verde". As regiões cerebrais implicadas nas representações semânticas - área de Wernicke - se ativam assim espontaneamente. O cérebro procura de maneira "irreprimível" o sentido da palavra. Depois aparece uma grande atividade no córtex cingular (NT - giro cíngulo do córtex límbico) anterior, uma zona que, segundo o pesquisador de Lyon Olivier Koenig, "parece crítica na atividade de inibição da resposta automática do sentido veiculado pela palavra".

Foi nesta mesma região préfrontal que a câmera de pósitrons descobriu os neurônios da memória de trabalho, de curto prazo, úteis para reter um número de telefone ou de um quarto de hotel. Quanto às lembranças mais profundas, elas estão codificadas nas proximidades das áreas primárias da cor (para o amarelo da banana) ou do movimento (para o galope do cavalo).

Os meios modernos de investigação cerebral não colocaram em questão as localizações seculares da linguagem nas zonas de Broca (produção de fonemas) e de Wernicke (compreensão). Se a fala - compreendida aqui a fala interior - vem do hemisfério esquerdo, também é o caso das chamadas tarefas metalinguísticas: achar os verbos, rimas, juntar letras e sílabas, compará-las. Uma pessoa não treinada a quem peçamos que associe verbos a objetos mobiliza três regiões "esquerdas". Mas, uma vez familiarizada com este exercício, ela só mobiliza uma região insular comum aos dois hemisférios e especializada na simples leitura. Ao aprender, o cérebro remodela seus circuitos segundo a lei da economia. Isto acontece de outro modo na aprendizagem do movimento: a mão esquerda do violinista se vale de uma representação cortical superior à do não-violinista.

O teste dos kana e dos kanji é um clássico da subutilização das áreas neuronais. Os japoneses utilizam dois sistemas de escrita. Os kanji, ou ideogramas chineses, e os kana, que surgiram no século 19, uma linguagem silábica que recorre menos à imagem. Ainda que o hemisfério esquerdo seja dominante nos dois casos, a leitura dos kanji exige o recurso às regiões parietal e temporal direitas, sinal de um esforço visual. Outra curiosidade: a audição de palavras abstratas não estimula as mesmas zonas do hemisfério esquerdo que a audição de palavras concretas.

Em um estudo publicado na revista Nature em abril de 1996, Antonio Damasio e sua esposa Hanna também identificaram áreas que participam de um processo da linguagem, exteriores às regiões clássicas de Broca e Wernicke. "Creio que existem três sistemas", explica Damasio. "O primeiro é conceitual: são nossas idéias sobre as coisas ou as pessoas. O segundo trata das palavras ligadas a estes conceitos: uma mesa, um leão, uma pessoa... Entre os dois intervém um mecanismo de mediação que vai do conceito à palavra e da palavra ao conceito. Tratam-se de regiões "diplomáticas' diferentes conforme se trate de uma pessoa, um animal, ou uma ferramenta, como uma chave de parafuso ou um martelo".

Damasio circunscreveu estas regiões por meio da tomografia por emissão de pósitrons. Situadas no córtex sensório-motor, grandemente distribuídas pelo hemisfério esquerdo do cérebro (frontal e temporal, mas também parietal e occipital), seu papel é decisivo. Elas permitem reconstruir "no ato" o nome de um amigo com quem se cruza na rua, ao fornecerem os fonemas, os sons que compõe seu patronímico. Em troca, a voz deste amigo ao telefone ativa as mesmas regiões intermediárias, que, por sobre os fragmentos adormecidos, reconstróem imediatamente uma imagem, um rosto. Para Damasio, cada pessoa abriga em si uma cidade de Brigadoon, que a lenda (escocesa) diz despertar uma vez a cada 100 anos, e permanece adormecida no intervalo. "Esta visão do cérebro contradiz o estruturalismo, que confunde as palavras e as coisas", prossegue Damasio. "A realidade é diferente: as coisas são as coisas, independentemente das palavras que as possam qualificar". (NT - uma referência direta ao livro As Palavras e as Coisas, do estruturalista Michel Foucault).
Como prova, seus exames de pacientes lesados nas regiões cerebrais "diplomáticas" da linguagem. Diante da foto de Kennedy, um responde: "Não sei quem é". Ele perdeu o conceito. Outro diz: "E' o presidente que foi assassinado", sem poder recordar o nome.

Por seu lado, o psicolinguista Jacques Mehler observou que entre os bilíngues perfeitos a segunda linguagem se acavala exatamente na área da primeira língua. Ao contrário, um bilíngue esforçado, que tropeça nas palavras e conserva forte sotaque, "aloja" sua segunda língua à distância da língua materna. Citemos ainda a particularidade dos adultos japoneses incapazes de apreender os sons "ra" e "la" ( à diferença dos bebês nipônicos, que conservam esta faculdade até os seis meses, antes de serem dela privados pela influência do meio exterior). Durante a segunda guerra mundial os americanos, sabedores desta lacuna, exploraram-na desavergonhadamente ao codificarem suas mensagens secretas à base de "la" e "ra".

Outras linguagens não deixam de supreender. Ao observar o cérebro em pleno cálculo, Stanislas Dehaene descobriu que a comparação entre números inteiros, a multiplicação e a subtração solicitam regiões distintas do córtex. "Quando se comparam quantidades, uma pequena região parietal direita entra em atividade", escreveu ele. "A multiplicação só ativa a região parietal esquerda. A subtração ativa simultaneamente as duas regiões, com uma extensão e uma intensidade muito pronunciadas". Se o reconhecimento de palavras - e de números escritos por extenso - se situa exclusivamente no hemisfério esquerdo, os algarismos arábicos são apreendidos pelos dois hemisférios. Mas só o cérebro esquerdo possui as tabuadas de adição e de multiplicação, e sabe calcular e anunciar os resultados em voz alta enquanto o cérebro direito fica mudo.

A eletroencefalografia, que capta a atividade cerebral no nível dos milésimos de segundo, testemunha as trocas ultrarápidas entre os dois hemisférios: "Se a multiplicação for simples", explica Dehaene, "como 2x3, a ativação parietal é fortemente lateralizada à esquerda e de curta duração. Se, ao contrário, a multiplicação for menos familiar, como 8x7, então ela parece desatracar do hemisfério esquerdo antes de se estender até a região parietal direita durante muitas centenas de milésimos de segundo".

As bases neuronais manifestas da curiosa mathematica podem-se reunir aquelas, não menos dispersas, da música. Os trabalhos de Justine Sergent, no Instituto Neurológico de Montréal, revelaram esta configuração particular do cérebro: a perda da linguagem verbal - afasia - não implica necessariamente em uma perda da linguagem musical - amusia. O organista francês Jean Langlais, deste modo, continuou a compor ao mesmo tempo em que se tornou incapaz de redigir ou de ler frases depois de um acidente vascular cerebral. A amusia é, por sua parte, seletiva: ela pode se traduzir por uma incapacidade de escrever notas sobre uma partitura ou de tocar peças ao mesmo tempo em que as faculdades auditivas estão intactas.

Em 1933, Maurice Ravel confidenciou à sua amiga Valentine Hugo: "Nunca mais realizarei minha Jeanne D'Arc. Esta ópera está lá, na minha cabeça, eu a conheço, mas nunca a escreverei. Acabou, não posso mais escrever minha música". Sobre a partitura de Don Quichotte à la Dulcinée, sua escrita estava tão irreconhecível que uma pessoa de suas relações acreditou ter sido redigida "por uma mão amiga". Agráfico, apráxico (por imperícia, jogou uma pedra no rosto de alguém ao tentar fazer ricochetes sobre a água), Ravel sofria de uma amusia parcial: as notas que compreendia, que sentia vibrarem nele, não as podia traduzir em atividade motora, tangivelmente criadora. "A competência musical que lhe restou pode ser comparada à de um melômano ou de um crítico musical bastante ciente de que nunca teve à sua disposição o conhecimento técnico que constitui a ferramenta básica de um compositor", escreveu Justine Sergent. Num teste sob a câmera de pósitrons ( e IRM) dez pianistas profissionais destros que deviam ler em silêncio, escutar e depois tocar um coral de Bach, ela relacionou as zonas estimuladas: uma grande rede neuronal que ocupava os quatro lobos cerebrais, nas regiões adjacentes à da linguagem. A exemplo das áreas visuais, cada território possui uma especialidade musical própria.

Antonio Damasio pensa em lançar no ano que vem (1999) um programa neurológico para explorar, com dois intérpretes europeus, a relação íntima entre a música e o cérebro. Será que ele quer ler os pensamentos carregados de emoção? "Não, isto não me interessa. Estamos perto de compreender a biologia do espírito, seus mecanismos. Mas a experiência pessoal é absolutamente particular, e espero que continue assim. Ela constitui o último refúgio".

Vamos desligar a câmera de pósitrons, serenar o campo magnético. O cérebro está visto. Resta todo o desconhecido ligado ao órgão do conhecimento, este aparelho sem igual.

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