sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - UM MUNDO IMAGINADO - parte 2/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes


O doutor Harlow havia ouvido falar em frenologia, até que em 1848 lhe foi apresentado um jovem contramestre da Nova Inglaterra que uma barra de ferro de 6 quilos, 1,10 m de comprimento (com um ponta afiada de 18 cm), e com 3 cm de diâmetro, havia literalmente perfurado o todo de seu crânio, atravessando a parte frontal de seu cérebro para depois cair a alguns metros de distância. Phineas Gage, este era seu nome, ignorava que tinha se tornado um caso bastante discutido da neurologia e das lesões cerebrais. Uma hora após o acidente, devido ao embuchamento malfeito de uma mina explosiva, Gage, que tinha perdido um olho, falava normalmente e contava sua desventura sem dificuldade aparente. Nada lhe faltava de suas faculdades intelectuais, nem de seu vocabulário, suas lembranças, nem mesmo de suas capacidades motoras.
Levou algum tempo para que as pessoas próximas a ele constatassem que, por outro lado, sua personalidade havia mudado brutalmente. "Gage não era mais Gage", nota Antonio Damasio em O Erro de Descartes. O equilíbrio entre as faculdades intelectuais e suas pulsões animais encontrava-se abolido. O doutor Harlow, assim, observou que Phineas Gage apresentava "humor instável, irreverente, proferindo às vezes grosseiras blasfêmias, o que nunca fazia antes, e manifestando pouco respeito por seus amigos". Este novo retrato conflitava com suas qualidades de "antes": "Fino e hábil nos negócios, capaz de energia e perseverança na execução de todos os seus planos de ação". Despedido de seu trabalho, Gage termina sua triste carreira como atração do circo Barnum de NY, onde ele contava seu acidente sem jamais largar a barra de ferro que o havia perfurado, explorando sua cabeça como Phileas Fogg (havia explorado) a Terra, cercado de jovens com pele de elefante e de mulheres monstruosas.
As descrições do doutor Harlow foram estudadas por um discípulo de Gall. Segundo ele a barra de ferro tinha passado "pela vizinhança da Benevolência e na parte anterior da Veneração", duas "localidades" caras à frenologia. "Seu órgão de Veneração foi lesado", precisou o observador. " É por isto, sem dúvida, que não parava de blasfemar". Mais seriamente, a patologia de Phineas Gage sugeriu um novo olhar sobre as funções cerebrais e suas afecções geográficas. O intelecto de um homem, sua linguagem, podem permanecer intactos ao mesmo tempo em que ele é privado do senso moral, do bem e do mal. "Ele tinha perdido uma característica própria do homem", conclui Antonio Damasio: "Fazer projetos para seu futuro enquanto ser social".
Nesta época ignorava-se um aspecto importante do cérebro, sua capacidade de funcionar como um todo, o neocórtex, local do pensamento mais evoluido, recebendo sem cessar sinais emocionais provenientes do "cérebro fluido", descrito pelo professor dee neurofisiologia Jean-Didier Vincent. Um anacronismo impõe-se aqui, antes de chegarmos a Broca, contemporâneo de Gall, e à localização da fala. No começo dos anos 70, Mac Lean apresentou sua teoria dos três cérebros superpostos dentro da caixa craniana: um cérebro reptílico, profundo, vindo do balbucio da espécie, acantonado nas tarefas primárias, beber, comer, reproduzir-se. Um cérebro sentimental, ou límbico, (descrito em sua época por Paul Broca), vazado por emoções e por uma memória genérica dos movimentos, do que faz sofrer, do que dá prazer. Um neocórtex que pensa, antecipa, calcula e age. "Como o limbo da mitologia cristã", escreve Jean-Didier Vincent, "o sistema límbico é o intermediário entre o céu neocortical e o inferno reptiliano. As representações do mundo exterior e interior se superpõe ali".
O avanço das neurociências mostrou as falhas desta trindade cerebral. O homem não estratificou seu intelecto no decurso da evolução, e a imagem de um São Jorge abatendo o dragão que se esconde em nós, ou do motor colocado sobre o arado, presta conta imperfeitamente da arquitetura cortical. "Não existe lei da recapitulação", explica ainda Jean-Didier Vincent, "através da qual seríamos sucessivamente girino, réptil, camundongo, macaco e homem. Mas o cérebro reptiliano repercute no córtex (com a passagem de neurotransmissores químicos, serotonina, adrenalina) e nosso córtex frontal toma as decisões emocionais. A tessitura é tal que não podemos separar o afetivo da memória e do intelecto".
Tal verdade estava contida inteiramente no acidente de Phineas Gage, ocorrido há um século e meio. Foi necessário um tempo para que o homem, "entrincheirado em seu pensamento", admitisse que o animal que havia nele não estava relegado aos baixos estágios de seu encéfalo, mas afluia na quintessência do seu "eu". Pois, se não se trata de uma recapitulação, o cérebro humano é uma síntese dos mundos passados. "Nós somos um produto da evolução das espécies", admite Alain Prochiantz em seu ensaio Em que Pensam os Calamares, e compartilhamos um ancestral comum com o polvo. Mesmo se a estrutura do nosso córtex e a invenção da linguagem permitem que escrevamos sobre os polvos, e não o inverso, resulta desse parentesco que as outras espécies animais, aqui compreendidos os invertebrados, têm alguma coisa a nos ensinar sobre o pensamento, ainda que consciente". Percebemos o eco de Darwin: "A estrutura corporal do homem carrega a marca indelével de uma origem inferior". O vestígio deste passado evolutivo subsiste também nas rugas do invólucro mental.
Fim do anacronismo. Na metade do século 18 ninguém saberia dizer com precisão onde se encontra o pensamento. Será que ele foi colocado no cérebro como doces são colocados em um pote? , interroga-se o mesmo Prochiantz, zombando da teoria antiga de Cabanis, segundo a qual o córtex secreta o espírito como o fígado secreta a bílis, de maneira endócrina, sem construção particular, sem... pensar nele. Quando o anatomista e cirurgião Paul Broca apresenta o fruto de suas descobertas em 1861, o cérebro finalmente vai falar. Diante da Sociedade de Antropologia, Broca presta contas sobre a autópsia que fez em um certo Eugène Leborgne, mais conhecido nos anais médicos pela alcunha de "Tan-Tan", a única sílaba que ele sabia pronunciar, além da blasfêmia "Pelo amor de deus!", que escapava bizarramente de sua boca se ele percebia, desesperado, que ninguém o estava entendendo.
A comunicação de Broca é conhecida sob o título de "Perda da fala, apatetamento crônico e destruição parcial do lobo anterior esquerdo do cérebro". A partir de uma lesão do tamanho de um ovo de galinha na terceira circunvolução frontal do hemisfério esquerdo, "Tan-Tan" era incapaz de "coordenar os movimentos próprios da linguagem articulada". Esta afasia motora parecia confirmar que o espírito não era um todo, mas um conjunto fragmentado. Broca marcou um ponto para as teses "localizacionistas". A área da linguagem, batizada de área de Broca, consagrava uma zona precisa do cérebro como sede da fala, distinta da memória semântica e visual das palavras, que continuou intacta. Mas o ensinamento obtido deste cérebro atingido deixava uma perplexidade: Broca tinha localizado uma função ou um déficit? Uma lesão neste preciso local arruinaria a totalidade de um processo ou somente um eixo isolado, crucial mas não único?
Foi preciso esperar pelas representações modernas das imagens médicas por ressonância magnética para que se detectassem outras áreas "associativas" implicadas na linguagem, ainda que a área de Broca, com o passar do tempo e o crivo da experiência, tenha conquistado o direito de existir. Ela é o primeiro ponto fixo sobre o mapa incerto de um "estado central flutuante". Ela dá o ponto de partida para um cérebro assimétrico onde o hemisfério esquerdo fala, calcula, analisa e raciocina, enquanto o hemisfério direito reconhece rostos e formas, situa o corpo no espaço, elabora um pensamento "para além das palavras" e vibra com as obras musicais.
Sem simplismo. Em 1874 o neurologista alemão Karl Wernicke descobre um novo sítio, mais interno, no lobo temporal esquerdo, implicado na expressão oral. "Ele demonstrou que as imagens auditivas verbais pareciam estar localizadas em um outro banco de memória, diferente daquele que continha as imagens dos movimentos articulatórios", escreveu Israel Rosenfield, professor de história das idéias na City University, NY. "A descoberta de dois sítios anatômicos distintos favoreceu o desenvolvimento da teoria imaginada por Broca, segundo a qual havia dois tipos de memória. (...) A área de Wernicke era o sítio das 'representações auditivas das palavras', quer dizer, dos registros de cada palavra individual. Daí ele deduziu que as duas zonas estavam ligadas por um feixe de fibras". Assim foram identificadas as duas grandes disfunções da linguagem, a afasia motora de Broca, encarnada por "Tan-Tan" e sua blasfêmia desesperada, e a afasia sensorial de Wernicke, na qual os doentes derramavam um turbilhão de palavras incoerentes das quais não sabiam mais o sentido.
Mas ninguém tinha ainda idéia da complexidade das conexões neuronais do frágil homem, rede pensante. 
Diante da opacidade de sua "caixa preta", o olhar esbarrava nas circunvoluções mudas da matéria. Se o escalpelo mostrava a espessura inegável das superposições, a ausência de homogeneidade dos tecidos e seu caráter aparentemente indolor, ao final do século o cérebro continuava sendo uma fortaleza bem protegida. A geografia cerebral deixava a desejar. É certo que as cissuras de Sylvius e de Rolando vinham delimitar claramente o lobo frontal e o lobo parietal. Na década de 1850 os anatomistas Leuret e Gratiolet representaram magnificamente os lobos occipital e insular, o corpo caloso e os ventrículos, o tronco cerebral e seus prolongamentos, bulbo e medula espinhal. Os que viajavam por este limbo não tinham um mapa que mostrasse "em relevo" a imperfeita rotundidade do encéfalo e a aferição exata dos dois hemisférios sob a casca (craniana). O desconhecido significava o incognoscível? Uma máquina só poderia revelar seu segredo a uma máquina de ordem superior?
O homem confrontado com seus limites não cessou de querer explicar sua própria aventura navegando de "ismos em ismos": o sensualismo de Locke e de Condillac, na linha platônica ("Não há nada no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos"); o behaviorismo watsoniano, reduzindo as atividades do comportamento ao binômio "estímulo-resposta" e excluindo toda representação cerebral interna; o cognitivismo encarnado pelo linguista americano Noam Chomsky, supondo, por sua vez, que o indivíduo é dotado desde o nascimento de uma armadura mental que lhe permite adquirir e manipular saberes; o ineísmo (NT - interiorismo), variante do anterior, que se recusa a considerar o córtex como uma (estrutura de) cera mole e virgem obliterada pelo (que lhe vem do) exterior durante sua vida. (Um conteúdo pré-existiria à experiência, como parece testemunhar a detecção de sinais de orientação no cerebelo de gatinhos de menos de oito dias, que jamais haviam abrido os olhos).
Continente dividido, o cérebro do homem lhe fornece uma representação do mundo ("imago mundi"), ao mesmo tempo que lhe permite agir sobre o mundo ("anima mundi"). Desdobrado, com as pregas desfeitas, um córtex humano ocupa uma área de 2 metros quadrados, uma verdadeira imensidade se comparado ao cerebelo desdobrado de um macaco "superior" comedor de frutas. (O do comedor de folhas é ainda menor: suas faculdades são em menor número, portanto seu córtex está menos interligado...)
Foi em 1919 que o doutor Korbinian Brodmann, sintetizando as conquistas da anatomia e da microscopia, propôs o primeiro mapa detalhado do cérebro humano, enumerando 52 áreas distintas relacionadas referencialmente pela diferença de arquitetura das células nervosas. Abandonando as ingênuas nomenclaturas de Gall, ele objetivou mais sobriamente as zonas da linguagem, da visão, da motricidade ou da audição, e também os espaços associativos cujos modos de funcionamento permaneciam obscuros.
Útil, o exercício foi insuficiente. As representações de Brodmann não poderiam pretender a universalidade, porque dois encéfalos jamais são iguais, sulcos e circunvoluções variando de um indivíduo para outro, e (são) também únicos e pessoais (aqui compreendidos os gêmeos univitelinos) como as impressões digitais. Por isso os cirurgiões da época tomavam como referência o Atlas de Taleyrach, um médico de Sainte-Anne que tentou montar um cérebro padrão por meio de um sistema proporcional, uma espécie de "imagens médias". 
Mas como escreveram os professores Bernard Mazoyer e John Belliveau, "a referência (era) a de um único cérebro utilizado para a elaboração deste atlas: o hemisfério direito de uma velhinha, dissecado após sua morte e mergulhado em formol".
A exploração deveria continuar. Ela prosseguiu mais para o centro, mais para o coração do cérebro. Em princípio em escala microscópica para se descobrir uma camada de neurônios diferentes, formando não "uma rede contínua como os canais da Camargue vistos de avião", observa Jean-Pierre Changeux, mas um conjunto de unidades independentes "em relação de contiguidade, como as árvores de uma floresta ou os ladrilhos (peças) de um mosaico", cada célula dialogando com as outras em um espaço evidenciado pelo fisiologista inglês Sherrington em 1897: a sinapse. Para ir até o fim, era necessário energia elétrica. 

Precisamente, depois de testes com eletrodos em cérebros de cães e coelhos, os médicos berlinenses Fritsch e Hitzig, e depois o assistente de fisiologia da Royal Infirmary de Liverpool, de nome Caton, revelaram a atividade elétrica do cérebro. Melhor: apareceu uma ligação entre as funções corticais precisas e os fenômenos elétricos. A visão cerebral tornara-se confusa. Da eletroencefalografia rudimentar às imagens modernas de ressonância magnética, a técnica estava pronta para apresentar um novo mundo aos olhos do homem.

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