quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - UM NOVO MUNDO - parte 1/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

2. UM NOVO MUNDO
Onde o cérebro trabalha, o débito sanguíneo aumenta. Seria necessário então apenas seguir este fio vermelho para chegar às regiões da linguagem e da visão, do cálculo ou da música. Graças aos rastreadores radioativos e à ressonância magnética as imagens modernas mostram o córtex que fala, conta, lembra, erra ou se perturba. Uma introspecção que permite apreender melhor a complexidade do universo cerebral sem violar a intimidade do pensamento.
Em seu romance Da Terra à Lua, Jules Verne imaginou um personagem intrépido chegando ao astro da noite a bordo de um foguete de alumínio. A exploração moderna do cérebro se vale dessa visão hermética e afunilada. Para comprovar o infinito de sua galáxia mental, uma constelação de cem bilhões de neurônios unidos por milhares de bilhões de micro-espaços, para que o homem se perceba como maior do que é, contendo um universo na desmedida de suas faculdades de pensamento, de movimento, de sofrimento, ele teve que se fazer pequeno, muito pequeno. E imóvel. Estender-se em um tubo estreito onde reina o campo magnético. Sem mover a cabeça, controlado por periscópios, guiado por ecos de navegação, sob a visão de lentes prismáticas, à espera do caos visual e sonoro que comanda a IRM (imagem funcional de ressonância magnética), palavra mágica que revela o espírito e suas regiões corticais.
Será que um dia leremos pensamentos? Pai desta tecnologia, juntamente com o pesquisador Seigi Ogawa, o doutor Denis Le Bihan, neuroradiologista do hospital de Orsay, parece confuso com sua própria análise: "Nos últimos anos, eu respondia: não. Hoje, acredito que sim". Infinito debate que divide gerações de usuários de jaleco branco. Marc Jannerod, diretor do novo Instituto de Ciências Cognitivas de Lyon, descarta definitivamente esta hipótese: "Poderemos saber se uma pessoa realiza ou não uma atividade mental. Em qualquer dos casos, não teremos acesso ao conteúdo de seu pensamento". Jean-Pierre Changeux, o patrono das neurociências no Instituto Pasteur, mostra-se perplexo e menos decidido: "Jannerod é contra por princípio ou por método?" A seus olhos, Denis Le Bihan está no caminho certo: "Se você ativar em uma pessoa os objetos de memória que representam um rosto, um animal, um instrumento, as diferentes áreas do lobo temporal vão se iluminar, você saberá em que pensa a pessoa".
Palavras francas que testemunham as paixões e proibições que cercam os estados mentais puros. Por sobre a artilharia das imagens, o espírito, que acreditávamos irredutível aos meios mecânicos, já tem condições de se dar conta, de ser explicado. O que disse Salret, o alienista da Salpêtrière? "Quando a própria cabeça for transparente como cristal", disse ele em 1920, "não perceberemos nenhuma diferença entre quem pensa, delira ou sonha". E o que disse Ivan Pavlov, o homem que fazia babarem os cães ao toque de uma campainha, tomado em 1927 por uma iluminação profética: "Se pudéssemos observar através da caixa craniana", escreveu ele, "e se a zona de excitabilidade ótima estivesse iluminada, descobriríamos em um ser pensante o deslocamento incessante de pontos luminosos, cercado por uma região de sombra mais ou menos espessa, ocupando todo o resto dos hemisférios".
Aqui estamos nós.
A centelha vem do sangue. E' uma longa história que começa em 1890, depois que dois fisiologistas ingleses, Roy e Sherrington, estabeleceram uma ligação entre a atividade cerebral e o fluxo sanguíneo. Quanto mais for solicitada uma área do córtex, mais ela recebe hemoglobina carregada de oxigênio e glicose, os combustíveis da matéria cinzenta. Era suficiente seguir o fio vermelho até o cérebro. O homem levou um século para chegar a este objetivo. Vêmo-lo (putz!) mais curioso do que nunca, surpreso com sua audácia e bem deliberado em levar a termo sua investigação sobre esse "fósforo meio úmido que serve de previsão para a hipótese de não estar vivo".
O eletroencefalograma, com seus eletrodos colocados sobre o escalpo do paciente, fornece em tempo real o estado ativo elétrico dos neurônios, sem permitir que se localizem com exatidão as zonas de trabalho. Nos anos 70 a escanografia, ou scanner de raios X, permitiu que fossem feitos os primeiros mapas funcionais do cérebro. Mas às imagens faltavam os contrastes para que se pudesse entrar na intimidade das células. A década de 90 presenciou a ida pelos ares dos últimos empecilhos, com a tomografia por emissão de pósitrons (TEP), depois o ímã da IRM funcional, no campo magnético trinta mil vezes superior ao da Terra.
Nos dois casos quem fala é o sangue. A primeira técnica é ligeiramente invasiva. Injeta-se no braço de um voluntário um isótopo ou rastreador radioativo cuja meia-vida - período de radiação - é breve: 123 segundos para o oxigênio 15. Durante este curto intervalo a pessoa examinada deve se entregar a uma tarefa cognitiva ou motora precisa, ler palavras, escutá-las, fazer oposição entre o polegar e os outros dedos. Ao se desintegrar durante sua viagem em direção ao cérebro o isótopo emite um pósitron que logo se choca com uma partícula irmã, um elétron. Deste encontro no "pico" nascem dois fótons, dois grãos de luz que são filmados por uma câmera de pósitrons disposta como os anéis de Saturno à volta do crânio do indivíduo. Os detectores, muito sensíveis aos raios, funcionam como circuitos coincidentes: religados aos pares, eles só assinalam uma ocorrência se dois fótons se propagarem em sentido inverso. Um cálculo complexo permite então a reconstituição das imagens do corte do cérebro que reflete sua atividade. As emissões de fótons culminam ali onde o débito sanguíneo for mais forte. Daí a zona solicitada é deduzida, quando o indivíduo fala, calcula, escuta uma mensagem ou movimenta um dedo.
Esta técnica tem limites: ela transmite o que vê com um segundo de atraso, sem obter a velocidade com que o cérebro estabelece ou modifica suas conexões, dezenas ou centenas de milisegundos. Assim, a TEP padece de uma ligeira imprecisão: as áreas identificadas estão a muitos milímetros das áreas realmente em ação. A IRM corrige estes defeitos sem eliminá-los completamente. Mais próxima da cronometria cerebral, mais fiel na localização das zonas de trabalho, ela por sua parte não exige nenhuma picada no braço, e assegura longas sequências de cenários. O afluxo de sangue oxigenado nas partes ativas do córtex perturba o campo magnético local. Os sinais magnéticos emitidos depois do bombardeamento de ondas de rádio permitem que se façam as mais fiéis representações, até hoje, do cérebro pensante.
O uso clínico dessas imagens parece ser primordial. Uma exploração pré-operatória informa o cirurgião sobre o lugar preciso onde a extração de um tumor não fará o paciente sofrer qualquer tipo de paralisia. 
Também vale para as pessoas acometidas de epilepsia. A secção parcial do lobo temporal pode provocar perda de linguagem, a afasia. Até hoje os médicos não tinham outro recurso além do teste traumatizante de Wada: com um catéter enfiado em uma carótida, o paciente recebia um barbitúrico durante um minuto em seu suposto hemisfério da linguagem e passava por uma prova de produção ou reconhecimento de palavras. Mas o método carecia de viabilidade. O barbitúrico se difundia para além das áreas visadas. Assim que o doutor Le Bihan coloca uma menina epilética de 10 anos sob seu magneto e lhe pede que cite nomes de brincadeiras, de alimentos ou de hábitos, ele sabe que as respostas serão indiscutíveis e o teste de Wada inútil. Verdadeira erupção cerebral, a epilepsia se traduz por um débito sanguíneo aumentado e quase simultâneo em diversas regiões do cérebro. "Mas existe mesmo uma zona que se estimula antes das outras, um foco epilético. A IRM deverá localizá-la", especifica o facultativo de Orsay.
Tudo certo, as doenças degenerativas do sistema nervoso, como as doenças de Alzheimer ou de Parkinson, indicam antes de mais nada a necessidade de um conhecimento melhor do genoma humano. Portanto as imagens obtidas dos sinais precursores das afecções do cérebro têm interferência pequena, como a da esclerose em placas. O simples movimento de um dedo da mão direita ativa uma região do hemisfério esquerdo do cérebro. Ele também estimula os núcleos cinzentos envolvidos no refinamento do movimento. 
Veredito da IRM: estes núcleos são inoperantes nos parkinsonianos.
Na última primavera, uma equipe de pesquisadores de Saint Louis (Missouri) identificou um nódulo profundo, seis centímetros atrás da fossa nasal, o córtex préfrontal articulado, como o local presumido da melancolia, também chamada de depressão. As imagens da câmera em algumas posições mostraram que esta zona era pouco ativa em uma amostra de pacientes depressivos, em comparação com a (zona) das pessoas "normais". 
Graças à maior precisão da IRM, os cientistas de Saint Louis constataram que os tecidos cerebrais do córtex préfrontal articulado dos doentes era 50 % menos espesso! Das numerosas experiências realizadas com esquizofrênicos fez-se surgir uma hipofrontalidade - portanto uma atividade enfraquecida do córtex frontal onde se sediam as funções superiores: reflexão, antecipação, coerência do discurso ou do cálculo. 
Sobretudo, as alucinações visuais ou auditivas ativam as áreas primárias da visão e da audição, como se se tratassem de fatos realmente percebidos. Incapaz de discriminar entre mundo exterior, o produto de sua memória ou o fruto de sua imaginação, o cérebro dos esquizofrênicos cria para si seu próprio mundo.
Mas devemos acreditar naquilo que vemos? Onde se situam as fronteiras da normalidade? A TEP e a IRM funcional produzem seus preciosos dados segundo o princípio da subtração: o córtex da pessoa é "escaneado" ou "magnetizado" em repouso, e depois em atividade. A diferença entre os dois registros dá informações sobre as áreas implicadas. Resta a sombra de uma dúvida. O que significa "em repouso" para um órgão dotado de uma vida sui generis?
Um paciente deve olhar para diversos pontos luminosos vermelhos. Sua área visual primária, chamada V1, se ativa. Depois de alguns exercícios semelhantes, o médico lhe pede para não mais fixar os pontos vermelhos, e para fechar os olhos e se lembrar deles. Surpresa: a mesma área V1 se ilumina em seu córtex, sem que a retina tenha recebido qualquer mensagem. A questão vale a pena ser recolocada: devemos acreditar no que vemos se a imaginação provoca uma reação semelhante no cérebro? "V1 serve de tela", diz Denis Le Bihan. 
"Projetamos nela um vídeocassete ou um programa exterior". As pessoas "em repouso" às vezes são instadas a sonhar com um céu azul ou com uma noite estrelada. "Como as imagens podem ativar o córtex visual primário, mesmo esta condição não é anódina".
Um cenário semelhante ocorre no córtex motor: a pessoa testada deve movimentar os dedos de uma das mãos, um de cada vez, e depois ela efetua gestos similares "na cabeça", sem fazer qualquer movimento. 

Também aqui regiões idênticas do córtex são estimuladas. O mental training dos desportistas recebe sua consagração neurológica. Entre agir e imaginar a ação não existe nenhuma diferença cortical. O golfista, o corredor, o tenista, que se concentram sobre a tarefa a cumprir, decompondo cada gesto, animam em si mesmos uma espécie de simulador de bordo. O pesquisador do Inserm Jean Decety relata as incríveis conclusões de dois pesquisadores americanos que compararam a aprendizagem psíquica e física com relação à força do punho. "O treinamento mental produz os mesmos efeitos sobre o aumento da força muscular que o treinamento físico. Estes resultados só podem ser interpretados através da ativação dos circuitos motores centrais. Pois nenhuma contração dos músculos foi observada durante o treinamento mental".

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Equipe COG