domingo, 12 de fevereiro de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - UM MUNDO IMAGINADO - parte 1/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes


1. UM MUNDO IMAGINADO

O homem ereto é um velho mundo em marcha. Tudo o que ele é, tudo o que ele foi, tudo o que ele sabe dele e do resto está na casca enrugada - o córtex - de uma grande noz que tem 1.300 g e muitos neurônios, de matéria cinza pouco afável - de "terra e de água" , dizia Aristóteles - por onde passa, ligeiro ou fatal, o pensamento.

Se sobreviveu à noite de suas origens, erigido sobre suas duas pernas, as mãos enfim livres e as mandíbulas levadas a dimensões mais modestas do que as mandíbulas do seu irmão símio, o Homo sapiens deve isto ao impulso espetacular do seu lobo frontal, luz de seu cerebelo. Uma luz fechada na penumbra de sua caixa craniana, como Diógenes e sua lanterna à procura do homem, da alma.

Deste clarão escondido nasce o mistério. Uma palavra pouco valorizada nos escritos científicos, que a ela sempre preferiram a idéia de um desconhecido acessível por força das experiências, das teorias, e das hipóteses validadas sobre as mesas de dissecação, escalpelo na mão e nada de religião na cabeça. O homem não tinha um deus alojado no encéfalo, nem também um pequeno ser em miniatura, o homúnculo dos alquimistas, representado nas figuras antigas como um anão que vigia a partir do celeiro cortical os sinais que vêm do corpo e articulam movimentos e reações. A questão em suspenso era vasta como o mundo: a massa do cérebro, com suas estranhas circunvoluções, suas dobras complexas - dobraduras -, seus sulcos e cissuras, seus dois hemisférios unidos por um corpo caloso à maneira dos continentes que não ficaram à deriva, suas múltiplas glândulas, negros humores e cinzentos apêndices semelhantes aos escaleres de um balão, esta matéria, então, poderia "razoavelmente" abrigar o espírito?

Aqui começa a viagem. Viagem íntima e viagem de descoberta, daqueles que, uma vez soltas as amarras, não estão perto de terminá-la. Como nas grandes expedições ao Novo Mundo, havia navios, aqueles que Galeno acreditava descobrir entre o coração do homem e seu crânio, a "rete mirabile", ou rede admirável, que o célebre médico de Alexandria, após tê-la extirpado de mamíferos com seu bisturi, atribuía injustificadamente à espécie humana. A seus olhos a torrente (sic) sanguínea transportava a energia vital queimada pela caldeira cardíaca até a base inferior do cérebro, onde ela se transformava em princípios espirituais. Durante treze séculos, até mais, o homem escolheu não escolher. "Diga-me onde mora o amor, no coração ou na cabeça?", pergunta suplicante um herói do Mercador de Veneza, de Shakespeare.

Depois da Renascença, portanto, as dissecações de animais e de cadáveres, e o entusiasmo pela anatomia, revelaram muitos segredos do órgão superior do homem. "Leonardo da Vinci, entre 1504 e 1507, no Hospital de Santa Maria Nova, de Florença, apresenta pela primeira vez um modelo em cera dos ventrículos cerebrais e mostra um projeto preciso das circunvoluções", escreve Jean-Pierre Changeux no livro O Homem Neuronal. Mas ainda não se trata da estrada real para a verdade "cefalocêntrica", que coloca o cérebro na origem da expressão humana. Precisamos voltar a Aristóteles para descobrir o erro de direcionamento. O filósofo entrou pelo caminho errado ao privilegiar a tese "cardiocentrista", aquela que dá ao coração que bate o monopólio da inteligência e das paixões, sendo o cérebro na melhor das hipóteses apenas um refrigerador precoce. Também Homero se perdeu nessa corrente, ao sabor aleatório das viagens e das miragens: a América não foi dada a Colombo ao primeiro golpe...

Dezoito séculos antes de nossa era, os egípios perceberam a direção certa ao examinarem feridas do crânio, descobrindo "as rugas semelhantes àquelas que se formam sobre o cobre em fusão". Um papiro recuperado desta época longínqua testemunha o espanto do cirurgião, fielmente transcrito pelo escriba, diante de um ferimento na cabeça que provocou dificuldades motoras. Partes do corpo tão distantes "comunicam-se"? O homem da arte notou a perda da fala causada por um esmagamento da têmpora, sem tirar daí qualquer conclusão. Os antigos egípcios, por prudência ou por crença (religiosa), evitavam renunciar à primazia do coração.

Foram necessários alguns gregos de gênio, Demócrito, Hipócrates, Herófilo e Galeno, para abalar a visão aristotélica. Demócrito qualifica o cérebro de "cidadela do corpo", de "guardião do pensamento e da inteligência". Hipócrates afirmou que "se o encéfalo estiver irritado, a inteligência se desarruma". Três séculos antes da nossa era, Herófilo deu um passo decisivo ao reconhecer os nervos do movimento, que ele distingue dos nervos do "sentimento"(hoje batizados de sensóriomotores). A chamada dissecação "abjeta" do cérebro fresco de criminosos permite que ele relacione medula espinhal e cerebelo.

Quanto a Galeno, que a ilusão da "rede admirável" não desacreditou ( são os erros fecundos), colocou a nu uma realidade animal aplicável, desta vez, ao homem: a lesão profunda de um ventrículo cerebral afeta o corpo e a atividade mental. O cérebro, in fine, supremo comandante do destino de cada um, rei sagrado do pensamento, senhor dos gestos e das emoções por mais de vinte séculos, ainda tem que lutar com a transmissão de idéias tingidas de sentimentalismo para que o coração tenha suas próprias razões. A partir de então a causa é entendida: é a chapa do eletroencefalograma que marca e assinala o fim de um homem.

Mas a matéria, esta matéria vil e delimitada pelo espaço e pelo tempo, pode engendrar o espírito livre, imaterial e, acrescentam os pais da Igreja, eterno? Eis René Descartes e seu dualismo. Na parte 4 do
Discurso sobre o Método, o filósofo cria uma oposição prometida à posteridade entre a res extensa - a substância com extensão (ainda que limitada ao invólucro carnal) - e a res cogitans - a substância pensante -, entre o corpo e o espírito. "Com uma ausência de clareza que não lhe era costumeira", escreve o prêmio
Nobel de medicina Gerald Edelman, "Descartes declarou que as interações entre a res cogitans e a res extensa ocorriam na glândula pineal", uma glândula singular, envolta no encéfalo, e é justamente em sua característica única que Descartes se apoia para eleger o local da inteligência: "As outras partes de nosso cérebro são duplas, e nós temos um só pensamento de uma mesma coisa ao mesmo tempo".

Ao privar o espírito de seu suporte físico, o filósofo separa a ciência de uma perspectiva esclarecedora: a pesquisa biológica, neurológica e fisiológica dos estado mentais, como se as engrenagens de um mecanismo estivessem limitadas ao corpo. "Aqui se situa o erro de Descartes", explica Antonio Damasio, professor de neurologia na universidade de Iowa. "Ele instaurou uma separação categórica entre o corpo, feito de matéria, dotado de dimensões, movido por mecanismos, e o espírito, não-material, sem dimensão, e isento de qualquer mecanismo. Ele afirmou que as mais delicadas operações do espírito não tinham nada a ver com o funcionamento de um organismo".

Ao tirar o pensamento do corpo ( e La Mettrie por sua vez escreve sobre isso: "A alma é apenas um termo vão; temos que concluir temerariamente que o homem é apenas uma máquina"), Descartes preparou o terreno para um pensamento mecanicista que se obstinou, até época recente, em dividir o cérebro em peças, a imagem do computador substituindo a do refrigerador. Como se o espírito fosse um conteúdo lógico informático com o qual o córtex se contenta em "funcionar". Diretor do laboratório do desenvolvimento e da evolução do sistema nervoso na Escola Normal Superior, Alain Prochiantz vê no erro de Descartes um avatar de sua época: "Ele entrou no cérebro pelo olho, no momento em que foram inventadas as lupas ópticas. A visão era a rainha das sensações, e ele percebeu que havia uma máquina dentro do homem. Creio que sua percepção teria sido diferente se ele tivesse abordado o cérebro pelo odor ou pelo tato".

O tom está dado. Se o homem é um espírito puro ("Cogito, ergo sum", ao qual reage em vão o "Sou, logo penso" do escritor espanhol Miguel de Unamuno), seu corpo é uma máquina autônoma. Vindo ao apoio desse dualismo o mecanismo centralizador (em tecelagem) de Vaucanson e os robôs da fábrica Renault, a idéia de que o irracional e o indeterminismo saem do campo científico e só podem ser apreendidos pela psicanálise, o inconsciente, o superego... A doutrina da Igreja sobre a imaterialidade da alma está salva. Os teólogos não quiseram considerar a evocação da glândula pineal, por Descartes, como uma tentativa, ainda que pouco convincente, de localizar o espírito.

A viagem sobre o manto cortical prosseguiu, mas a tocha mudou de mãos. Chegara a hora de um médico anatomista vienense que teve durante a vida um renome (sulfuroso) comparável ao de Sigmund Freud. Ele se chama Franz-Joseph Gall, e passa a maior parte de seu tempo apalpando cérebros para revelar com isso "as faculdades inatas felizes e infelizes" do homem. Durante o dualismo triunfante deste final do século 18, Gall escandaliza ao colocar o espírito nos limites da caixa craniana. O cérebro passava por um continente compacto e anônimo, uma espécie de terra incognita paradoxal que, para dar ao homem uma representação do mundo exterior, evitava esclarecimentos sobre sua própria arquitetura mental.

Gall divide a superfície do crânio em 27 partes, que são igualmente funções psíquicas e motoras batizadas como principalidades. Já não se navega mais a olho nu: Gall inscreve os nomes sobre o cinza e o branco do mapa cerebral. A nomenclatura peca por uma certa inocência: lêem-se entre as regiões identificadas a combatividade e o instinto de destruição, o espanto e a imitação, a aptidão para ser consciencioso, a prudência e o amor próprio, o senso do maravilhoso, que Broussais, cirurgião do exército de Napoleão, disse que era particularmente desenvolvido em Moisés!

Para conduzir bem sua exploração sem abrir o crânio, Gall procura bossas e intumescências na superfície do couro cabeludo. Sua hipótese inicial é simples: as qualidades do homem deformaram seu cérebro e deixaram sua marca na abóbada de seu crânio. Imagem inversa das crateras lunares, onde aflora a bossa dos meteoros... Em Viena, Weimar e Paris, Gall é um prodígio e um demônio. (Pois) ele não ataca o dualismo ao ousar determinar uma residência para o espírito, recusando que um ser superior, uma boa alma, governe os sentidos e a consciência?

A flecha do tempo dissipará o segredo: Gall se enganou ao imputar funções fantasistas às depressões do encéfalo. (Ele apenas acertou na nomeação das áreas da fala e da memória das palavras na região frontal do cérebro). Mas sua intuição continua pioneira: se é impossível localizar sobre o córtex a avareza ou o gosto pela rapina, Gall abriu o frutífero caminho das localizações cerebrais. Ao representar o cérebro como uma federação de órgãos especializados, ele não somente recolocou o espírito em seu (devido) lugar, ele sobretudo alimentou no homem, agrimensor de suas próprias incertezas, a vontade pascaliana de conhecer a si mesmo, de colocar palavras nas zonas de sombra, de nomear, logo, de compreender. Sua tentativa tinha seus limites: ao subdividir o cérebro Gall não tinha idéia de que os seus centros funcionais não eram verdadeiramente centros, mas sistemas complexos e interdependentes, placas ou cartões neuronais ligados entre si pelo jogo combinado da genética, da memória da espécie, da experiência, do tesouro individual.

continua....

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