terça-feira, 6 de março de 2012

VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO - UMA MÁQUINA CELIBATÁRIA - parte 2/2

uma enquete de Eric Fottorino

LE MONDE - MAR/98

Tradução: Pedro Lourenço Gomes

Intermezzo sobre as aves. Jacques Ninio nos ensina que elas foram o primeiro instrumento que o homem utilizou para estender o alcance de seu olhar. Os vikings embarcavam em seus drakkars centenas de corvos, que eram soltos em pleno oceano, seguindo a direção de seus olhos para deduzir ou não a presença de terra firme. Segundo Alain Prochiantz, na primavera de cada ano a gaivota perde uma parte de seu cérebro, aquela que lhe permite lembrar onde escondeu sua provisão de grãos. Os traços dessas economias lhe voltam com o outono. Quanto ao canário amarelo, o estudo de de seus centros cerebrais mostra que todos os anos ele perde, sobre as folhas mortas (no outono), suas árias de canções de amor. Ele as recobra na época das cerejas. Alain Prochiantz vê aí "as primeiras indicações de uma possível renovação" dos neurônios, inclusive nos adultos, a despeito de um dogma contrário bem estabelecido. Voltando ao homem, diretamente: se os vikings tiveram a idéia de recrutar corvos vigias - no sentido de sentinelas - e viajantes , se o ser humano, como a gaivota e o canário amarelo, pode renovar "à vontade" seus territórios mentais, então existe o "jogo" no sistema, uma rutura de escala entre o mapa do genoma e o mapa do mundo cerebral. As ordens de grandeza, com efeito, são incomparáveis. Face aos 200.000 genes da espécie humana, o córtex libera 100 milhões de células, cada uma estabelecendo umas dez mil conexões com suas semelhantes, em um espaço astronômico composto de sinapses, o local privilegiado da linguagem neuronal. "O cérebro é uma máquina formidável", escreve Jean-Pierre Changeux, "um universo cujas conexões parecem mais ricas e mais diversificadas do que nossa galáxia, com suas miríades de estrelas". Máquina sem equivalente, "máquina celibatária", à maneira das criaturas dadaístas de Marcel Duchamp, no começo do século, que via neste gênero de objetos solitários "que trabalhavam para a alegria daquele que a construiu", nota Jean-Didier Vincent, "os ateliers produtores do imaginário". Assim é "A casada posta a nu por seus próprios celibatários", exposta no Museu de Filadélfia. Sob a lente do microscópio agitam-se os neurônios e suas ligações nervosas, dendritos e axônios, em múltiplas arborescências. Que arquiteto poderia desenhar a planta desse infinito? Jean-Pierre Changeux descreveu o quebra-cabeça dos anatomistas: 1 cm cúbico de córtex dissecado aleatoriamente contém 500 milhões de sinapses. "Se as contássemos mil por segundo, passar-se-iam entre 3.000 e 30.000 anos antes de nomearmos todas". Lembremo-nos de que as conexões são variáveis. 
Lembremo-nos de que a constância - falar, contemplar, refletir - é filha desta atordoante diversidade ( o neurologista Christian Desrouéné fala de um funcionamento do cérebro "abominavelmente liberal"...) A elucidação dos estados conscientes permanece como desafio científico. "Não é impossível. Deve-se fazer um esforço teórico", observa Changeux, pouco inclinado a subscrever as teses "misteriosistas". Os neuropsicólogos condenam seu reducionismo, uma visão estreita que inscreveria a atividade neuronal no coração de todos os estados mentais. "Tudo passa pela sinapse", admite o professor Christian Desrouéné, "mas não se pode limitar tudo à sinapse". O pesquisador do Pasteur rebate tranquilamente a crítica, invocando a herança de Claude Bernard e sua fé no método experimental: "A marcha da ciência não se envergonha em se mostrar reducionista", explica ele. "O universo cerebral é tão complexo que temos que abordá-lo por vias estreitas, difíceis, onde só progredimos passo a passo. O modelo não esgota a realidade. 
Mas tentamos reduzir esta complexidade a alguns mecanismos simples". Rede pré-interligada de neurônios, o cérebro encontra-se balizado por sinais elétricos e químicos, os segundos ativando os primeiros. Isoladas pela primeira vez há pouco mais de um século pelo italiano Golgi, depois pelo espanhol Ramon y Cajal (autor de soberbas representações do tecido neuronal em tinta nanquim), as células nervosas são percorridas, ao longo de suas fibras, por aquilo que os biólogos de antigamente chamavam de espíritos animais. Descartes evocava o ar circulando nos tubos do órgão. Newton falava de "éter intangível"" . Tratavam-se de impulsos elétricos, um "fato comum" revelável através de eletrodos. Mas os neurônios não se agregam como um tecido terminado, desprovido de dificuldades. As membranas são separadas umas das outras por minúsculos espaços intersticiais, as famosas sinapses, onde Jean-Didier Vincent nota que "seu arranjo preciso e confuso lembra uma tapeçaria de flores"(Biologia das Paixões). Assim como a eletricidade é um circuito multidirecional. Chegando à extremidade dos terminais nervosos, ela libera um agente químico secretado pelo neurônio, um tipo de mensageiro batizado de neurotransmissor, que atravessa o espaço sináptico para alertar a (ou as) célula(s)-alvo e nela(s) despertar uma nova reação elétrica, e depois química. Uns 40 neurotransmissores foram identificados até hoje, entre os quais a acetilcolina e a adrenalina (que provocam a contração dos músculos), ou a dopamina (ligada às sensações de prazer). A nicotina do tabaco, assim como o ópio da papoula, reproduzem o efeito de certos agentes químicos cerebrais. Jean-Pierre Changeux lembra a importância dos trabalhos de Claude Bernard sobre o curare utilizado antigamente (ainda hoje?) pelos índios da América do Sul. "O curare ocasiona a morte por asfixia ao bloquear a ação dos nervos motores sobre os músculos respiratórios"" . Na superfície das membranas, o agente químico é recebido por um receptor situado na junção dos nervos e músculos estriados. Foi ao estudarem enguias de descargas elétricas fulgurantes (três são suficientes para matar um homem) que Changeux e sua equipe isolaram o receptor da acetilcolina, completando a cartografia química - e também farmacológica - do córtex.
O que faz o cérebro com esta pletora de células de ramificações abissais? Prêmio Nobel de medicina, autor de Biologia da Consciência, o americano Gerald Edelman descreveu o funcionamento cerebral como um modo de "darwinismo neuronal". Hoje já se admite que o cérebro funciona segundo um modo seletivo e não instrutivo. `A medida que se forma e se desenvolve, ele abandona certos circuitos inúteis em proveito de conexões repetidas com sucesso, curtidas e recurtidas por uma aprendizagem bem sucedida e recompensada (o gesto que permite pegar um copo, a palavra e as frases que permitem fazer-se compreender). A frequência e a gratificação deixam um traço "mnésico" que se torna indelével. No interesse do plano geral fornecido pelos genes, cada um inventa seus próprios intinerários que venham validar assembléias neuronais ad hoc (NT - pertinentes). O professor Olivier Sabouraud assim descreve a modelagem dos meios de expressão na criança: "Primeiro ela entende (grande) quantidade de sons, antes de ingressar na reciprocidade ao reproduzí-los. Depois vem a restrição: ela se recentraliza sobre diversas conexões privilegiadas e abandona a maioria das outras, que participam somente do ruído de fundo". O infante do homem segue a evolução do pequeno pardal, cujo canto, composto de "sons selvagens" de umas quinze sílabas, se cristaliza, uma vez adulto, em um trilar de acentos monocórdios. Então se produz o que Changeux chama de "estabilização sináptica", a eficiência após diversas rodagens de muitos circuitos neuronais mobilizáveis a cada milisegundo para criar o sentido, chegar enfim a um certo estado de consciência. Instalada sua linguagem, o indivíduo entra em seu pensamento, direciona-o, exprime-o, compartilha-o, ou confronta-o. Constrói para si uma representação do mundo, tanto é verdade que o espírito, Aristóteles percebeu-o bem, não pode passar de imagens. O verbo não diz tudo do espírito: ao olho é necessário menos de um segundo para reconhecer um rosto. Descrito com palavras, fica irreconhecível. Orientar-se no espaço é muito difícil verbalmente (vire à direita, depois duas vezes à esquerda, e na galeria, etc.). Um plano traçado sobre o papel é um guia mais eficaz! Este teatro mental não conhece descanso. A atividade do cérebro só cessa ao final da vida. No fundo de sua história, cada um tece novas conexões, inventa, simula, pesa prós e contras, mede virtualmente as consequências de seus atos, utilizando para isso milhares de experiências do passado, solicitadas instantaneamente como se fossem oráculos. `A noite, no mais profundo do sono, o cérebro realiza uma tarefa bem precisa: consolidar os conhecimentos, condensar os traços, marcar os vestígios como um selo de bronze sobre um tablete de cera. Certamente, a regra da aprendizagem é o esquecimento. Porque para atravessar uma vida inteira o "órgão da civilização" (segundo o neurologista russo Luria) deve se poupar. A memória procedural, aquela que serve para dirigir um automóvel, torna-se rapidamente um automatismo que permite uma atenção divivida (trocar as marchas conversando ou escutando uma peça musical). Nem palimpsesto nem ardósia mágica, o córtex seria antes uma espiral. Tudo o que já viu ou percebeu fica enterrado, mesmo que só seja permitido o acesso às lembranças verdadeiramente "engramadas" que um acontecimento externo ou um afeto particular fazem ressurgir. Aqui, ainda, a memória é uma imagem. O professor Lhermitte evoca algumas passagens de `A Procura do Tempo Perdido, de Proust, para sublinhar o quanto o mundo (em) que mergulha Proust "volta em termos visuais: Combray para sempre, as maneiras dos pequeninos, e, enfim, a alusão aos minúsculos origamis japoneses".

A gênese das lembranças é uma mobilização bastante seletiva de módulos neuronais. Com a intervenção de um simples estímulo, eles estabelecem trajetos através do conjunto do córtex para ali colherem vestígios, fragmentos, como o paleontólogo que só dispõe de fósseis para reconstituir um animal de outra época. A lembrança não é de modo algum o arquivo bem arrumado de um computador que cospe seu conteúdo de modo idêntico. Não existe o "avô dos neurônios", que forneceria se solicitado a imagem de um (neurônio) próximo. Ao contrário, cada lembrança é reconstituída em termos de um jogo de pistas e traços, de uma instrução sem foco. (Ao curso intersináptico Jean-Didier Vincent acrescenta de bom grado o aroma dos odores, a representação olfativa do mundo). Se Marc Jannerod, diretor do Instituto de Ciências Cognitivas, compara a atividade cerebral ao cinema, é para descrever-lhe o princípio dinâmico. "Um filme é uma sequência de imagens imóveis", diz ele. "E' a projeção através de uma lente que cria o movimento. Isto vale para a linguagem e o pensamento: quando o cérebro funciona, os dois põe-se a caminho". Os contatos sinápticos que permitem ao homem construir objetos mentais, interpretá-los à sua maneira para formular hipóteses, agir com economia e discernimento sobre seu ambiente, estes contatos inapreensíveis são a um só tempo todo e parte, comparáveis ao sistema imune. Ninguém pode referí-lo com certeza, mas face ao agressor ele se mobiliza. Apesar dos avanços da imagens médicas, a idéia de cartografar as atividades cerebrais faz surgir uma dificuldade de princípio: como imaginar uma geografia móvel onde, segundo a arquitetura própria de cada indivíduo, os grandes sítios mentais e suas conexões seriam incertos, flexíveis, nômades? Desse modo as regiões implicadas na linguagem ultrapassam em muito a área de Broca. "Comparemos o cérebro com Paris", propõe François Lhermitte. "Se uma bomba destruir a ponte da Concorde, a função circulatória da cidade seria gravemente afetada. Mas isto quer dizer que a circulação automobilística se baseia na ponte da Concorde? Nosso córtex funciona como um todo. Certas zonas são especializadas. Mas cada uma tomada isoladamente não tem qualquer sentido". Deste turbilhão nasce uma conduta inteligente, para a qual não existe nenhuma reação pré-estabelecida. `A abelha incapaz de aprender uma rota de desvio, o Homo sapiens contrapõe uma capacidade lógica de não-confronto. Seu cérebro, ele se o constrói. Com sua parte de liberdade conquistada dos genes impotentes para gerir o universo sináptico, ele nunca cessou de modificá-lo. Um forte impulso frontal o empoleirou no topo da espécie, sem reduzí-lo ao estado de máquina pensante. Que computador reconheceria uma papoula ou uma borboleta , decidiria mudar de opinião, decidiria se reprogramar, ser Goethe e criar o Fausto? Que disco rígido se conceberia como disco rígido? "Não pense em um elefante!", desafia Gerald Edelman. "Reconheça, você pensou nele. E eu também. Mas onde está o elefante? Certamente não neste aposento. Para não pensar nele seria necessário de que você soubesse do que se tratava, que você o rememorasse e até, em certos casos, que evocasse uma imagem dele. Sobretudo, seria necessário que você compreendesse esta linguagem e este pequeno jogo de palavras". O espírito está aí. Se ele pode ser uma coisa ou outra, ele pode ser estimulado.

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