terça-feira, 19 de outubro de 2010

A Evolução Histórica dos Conceitos sobre Mente - parte final

por Ramon M. Consenza, MD, PhD
publicado em 31.12.2002 - Unicamp


Descartes, Cérebro e Mente

No século XVII os espíritos ainda dominavam as funções mentais. Nesta época René Descartes (1596-1650) escolheu  o corpo pineal não propriamente como a sede da alma, mas como o local da sua atividade. A pineal foi escolhida por ser um órgão ímpar, ao contrário das outras estruturas cerebrais, que são bilaterais. A neurofisiologia de Descartes, é bastante independente da neuroanatomia, que ele deliberadamente ignorava e é baseada nos espíritos animais e nos poros e vias pelos quais eles fluem para exercer suas ações. Segundo ele, “as partículas mais rápidas e ativas do sangue” eram levadas pelas artérias do coração para o cérebro, onde se convertiam num gás ou vento extremamente sutil, ou uma chama muito pura e ativa, constituindo o “espírito animal”. As artérias deveriam reunir-se em torno de uma glândula situada no centro do cérebro: a pineal.
Descartes imaginava que filamentos existentes nos nervos (que seriam tubos) poderiam operar como válvulas, abrindo poros que deixariam fluir os espíritos animais. Uma estimulação na pele, por exemplo, agiria sobre esses filamentos, provocando uma contração como resposta reflexa. Do cérebro os espíritos animais viajariam através dos nervos até o músculos, que seriam inflados, provocando o movimento. Esse seria o mecanismo para os atos involuntários.
 
 









Um reflexo segundo a fisiologia de Descartes. O fogo desencadeia movimentos dos espíritos animais através de nervos ocos. Esse deslocamento abre poros no ventrículo (F), deixando fluir espíritos que irão então dilatar o músculos da perna, provocando o seu afastamento.
Ilustração do livro de René Descartes, De Homine, publicado em 1662. As informações visuais são levados ao cérebro por nervos ópticos ocos. Daí elas chegam à pineal, que regula o fluxo do espíritos animais através dos nervos. Os espíritos viajarão até os músculos do braço, provocando um movimento.

As estimulações periféricas teriam o poder de abrir poros existentes no interior do cérebro e os espíritos seriam conduzidos daí até a glândula pineal, na superfície da qual haveria um completo mapa sensorial e motor. A vontade estaria sob o controle da pineal, que poderia regular o fluxo dos espíritos animais para os diferentes nervos.

O sono e a vigília, segundo Descartes (1662), dependeria do fluxo dos espíritos animais no cérebro, regulado pela pineal (H).  No desenho superior há pouco fluxo dos espíritos e o cérebro encontra-se flácido, durante o sono. O desenho inferior representa o estado de vigília, quando há grande influxo dos espíritos animais e a matéria cerebral está distendida.

     










A diversidade das sensações seriam decorrentes das diversas maneiras pelas quais os poros seriam abertos. Uma estimulação muito forte, por exemplo, daria origem à dor. Uma estimulação uniforme de muitas fibras na pele, levaria à sensação de superfície lisa. Já a estimulação desigual seria correspondente a uma superfície rugosa.
Ainda segundo Descartes, os espíritos animais podiam dilatar o cérebro, como o vento age sobre as velas de um embarcação,  despertando-o e permitindo a recepção das informações sensoriais. A ausência, ou pouca intensidade dos espíritos animais, levaria ao sono e ao sonho. Os espíritos animais serviam também para sustentar seu esquema para uma localização cerebral de movimentos e sensações. Os diferentes temperamentos e as habilidades naturais de cada pessoa corresponderiam às diferenças em número, tamanho, forma e movimento dos espíritos animais.

Bioeletricidade e o Dogma Neuronal

A idéia de que “espíritos animais” percorriam os nervos, que tinha origem nos gregos,  permaneceu corrente até o Século XVIII, quando ficou demonstrada a natureza elétrica na condução nervosa, destacando-se para isso o trabalho de Luigi Galvani (1737-1798) e,  já no século seguinte, o de Emil du Bois-Reymond (1818-1896). Du Bois-Reymond realizou seus estudos sobre transmissão nervosa  na década de 1840 e na década de 1870 propôs que os órgãos efetuadores seriam excitados pelos nervos através de corrente elétrica, ou de substâncias químicas liberadas pelas terminações nervosas.
 
 









Luigi Galvani
Emil Du Bois-Reymon
Quanto à importância do tecido cerebral para as funções nervosas, os conhecimentos fundamentais também se desenvolveram no século XIX. Theodor Schwann (1810-1882), que descreveu a bainha de mielina, foi quem primeiro propôs que todo o corpo seria formado de células. Sua teoria celular teve ampla aceitação para todos os tecidos, com exceção do sistema nervoso, onde se acreditava que as células eram contínuas, formando um grande sincício. Somente com a descoberta das técnicas de impregnação das estruturas nervosas pela prata (método de Golgi) foi possível uma observação mais acurada, resultando nos trabalhos de Santiago Ramón y Cajal (1852-1934), que já em 1889 argumentava que as células nervosas eram elementos isolados. Em 1891 Wilhelm von Waldeyer (1836-1921) cunhou o termo “neurônio” para designar a unidade anatômica e funcional do sistema nervoso.
Finalmente, veio a descoberta, por Charles Scott Sherrington (1857-1952), dos espaços existentes nas junções entre células nervosas ou entre estas e as células musculares. Sherrington chamou essas estruturas de “sinapses”.
 
 








Theodor Schwann
 
Santiago Ramón y Cajal
 
Camilo Golgi
 
Charles Sherrington
 
Wilhelm Waldeyer
 

Como se vê, há menos de três séculos o avanço do conhecimento permitiu que nossos cérebros e mentes deixassem de ser assombrados pelos espíritos gerados por nossa ignorância.

Bibliografia

  1. Blakemore, Colin  Mechanics of the Mind. Cambridge, Cambridge University Press, 1977.
  2. Finger, Stanley  Origins of  Neuroscience, A History of Explorations into Brain Function. New York, Oxford University Press, 1994.
  3. Milestones in Neuroscience Research.
  4. Sabbatini, R.M.E.: A História da Psicocirurgia. Revista Cérebro & Mente, 2 (1997)
  5. Sabbatini. R.M.E.: A Descoberta da Bioeletricidade. Revista Cérebro & Mente, 6 (1998).
  6. Wilkins, R.H. - Neurosurgical Classic-XVII. Edwin Smith Surgical Papyrus. Journal of Neurosurgery, March 1964, pages 240-244
  7. Poynter, Frederick N.L.(Ed.)  The History and Philosophy of  Knowledge of The Brain and its Functions: An Anglo-American Symposium, London, July, 1957. Springfield, Charles C. Thomas Publisher, 1958.

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