sábado, 9 de outubro de 2010

A Evolução Histórica dos Conceitos sobre a Mente -parte I

por Ramon M. Consenza, MD, PhD
publicado em 31.12.2002 - Unicamp


Atualmente, o homem comum sabe que o cérebro é o órgão responsável pelo comportamento e pelas faculdades mentais. As pessoas cultas também sabem que fenômenos químicos e elétricos estão por trás do funcionamento do sistema nervoso. No entanto, esses conhecimentos são relativamente recentes e durante muitos séculos as crenças sobre a maneira de funcionar do cérebro foram radicalmente diferentes das que professamos hoje.
Há muito tempo os homens ligam o cérebro com as funções mentais. Crânios com perfurações feitas em vida, com sinais de cicatrização, foram encontrados em sítios que datam de até 10.000 anos atrás. Muito provavelmente, essas trepanações eram feitas com o intuito de possibilitar a saída de maus espíritos, que estariam atormentando o cérebro.
Essa ligação do cérebro às funções mentais era natural, pois os homens primitivos em todas as eras podiam observar que fortes traumas cranianos induziam a perda da consciência e da memória, e até convulsões, que levavam a alterações substanciais da percepção e do comportamento.
A maior e mais importante prova documental desse conhecimento foi extraido do famoso Papiro Cirúrgico de Edwin Smith, que foi escrito no Egito por volta de 1.600 AC. Ele contém as primeiras descrições conhecidas das suturas cranianas, da superfície externa do cérebro, do fluido cerebroespinal e das pulsações intracranianas. O autor do papiro descreve 30 casos clínicos de trauma cranioencefálico e da medula, notando como as várias injúrias cerebrais eram associadas a mudanças da função de outras partes do corpo, especialmente os membros inferiores, tais como contraturas hemiplégicas, paralisia, incontinência urinária, priapismo e emissão seminal associada a trauma da coluna.





Trepanação realizada em um crânio na América do Sul (astecas)

 
Trecho do Papiro Cirúrgico de Edwin Smith

Cérebro e Mente na Antiguidade

Na cultura ocidental, Alcmaeon de Crotona (Sec. V A.C.) foi possivelmente o primeiro a localizar no cérebro a sede das sensações. Para ele, os nervos ópticos, que seriam ocos, levavam a informação ao cérebro, onde cada modalidade sensorial teria seu próprio território de localização.
 Ainda no século V A.C., Demócrito, Diógenes, Platão e Teófrasto punham no cérebro o comando das atividades corporais. Também entre os gregos, Herófilo (335-280 A.C.) dissecou  e escreveu sobre o cérebro e foi o primeiro a descrever suas cavidades, os ventrículos cerebrais, que ele associou com as funções mentais. Essa idéia, como veremos, teve enorme importância na “neurofisiologia”  dos séculos que se seguiram.
Hipócrates (460-379 AC) acreditava que o cérebro era a sede da mente. Ele escreveu:
"Deveria ser sabido que ele é a fonte do nosso prazer, alegria, riso e diversão, assim como nosso pesar, dor, ansiedade e lágrimas, e nenhum outro que não o cérebro. É especificamente o órgão que nos habilita a pensar, ver e ouvir, a distingüir o feio do belo, o mau do bom, o prazer do desprazer. É o cérebro também que é a sede da loucura e do delírio, dos medos e sustos que nos tomam, muitas vezes à noite, mas ás vezes também de dia; é onde jaz a causa da insônia e do sonambulismo, dos pensamentos que não ocorrerão, deveres esquecidos e excentricidades".
É uma espantosa e clarividente declaração, tão moderna quanto a que qualquer neurocientista atual poderia fazer. É de se surpreender, portanto, que os filósofos e médicos posteriores a Hipócrates, por muitos e muitos séculos, tenham regredido notavelmente, ao deslocar a sede da mente para o coração, como veremos a seguir.
   





Hipócrates
Aristóteles
Platão
 
 

                         Demócrito                           Alcmeon

Aristóteles (384-322 A.C.), divergiu de seus contemporâneos e afirmava que o coração era o órgão do pensamento, das percepções e do sentimento, enquanto o cérebro seria importante para a manutenção da temperatura corporal, agindo como um agente refrigerador. Segundo ele, os nutrientes subiriam pelos vasos sangüíneos e uma parte deles, uma espécie de refugo, seria resfriada no cérebro, transformando-se em líquido, de uma forma análoga a que ocorre com a água na natureza, quando se forma a chuva.
Aristóteles generalizou erradamente uma noção bastante antiga em todas as civilizações, de que pelo menos a sede das emoções seria o coração. Até hoje somos influenciados por essa noção, quando nos referimos ao símbolo do amor como sendo um coração, quando dizemos que estamos de "coração partido" ou de "coração pesado", que gostamos de algo "de coração", ou até que "decoramos" alguma coisa (a palavra vem de "saber de cór", do latim para coração). Isso, provavelmente, deve-se ao fato que a ativação do sistema nervoso autônomo simpático, que ocorre na expressão das emoções, altera de forma sensível a freqüencia cardíaca e força das contrações. A associação do efeito à causa em sua expressão periférica gerou a interpretação errônea, a qual os filósofos naturais tentaram "explicar" cientificamente.
Galeno (130-200) rejeitou as idéias de Aristóteles, argumentando que não tinha sentido acreditar que o cérebro tivesse uma função de esfriar as paixões do coração. Galeno, foi um intenso dissecador (o animal de escolha era o boi) e prestou muita atenção às meninges e às cavidades encefálicas e menos atenção ao cérebro em si. Naquela época, trabalhando com material não fixado, era natural que os ventrículos chamassem muita atenção, pois o encéfalo aparecia apenas como uma geleia amorfa.



Galeno
Para Galeno, os nutrientes absorvidos nos intestinos passavam ao fígado, onde era produzido o espírito natural. Este era levado ao coração onde, no ventrículo esquerdo, transformava-se em espírito vital, que pelas carótidas se dirigia a uma rede de vasos na base do crânio, a rete mirabile. Aí misturava-se com o ar inspirado, formando o espírito animal, que era armazenado nos ventrículos cerebrais e deles difundia-se ao  cérebro. Este espírito animal, vindo da mistura de um líquido e do ar, era considerado como a essência da vida e fonte das faculdades intelectuais. Quando necessário, ele viajava através dos nervos, considerados estruturas ocas, para provocar movimentos ou mediar as sensações.
Para Galeno, o material processado na rete mirabile e nos ventrículos produzia uma certa quantidade de refugo, parte líquido, parte gasoso. A parte gasosa escapava pelas suturas entre os ossos e pelos seios aéreos do crânio, sem ser percebida pelos sentidos. A parte líquida escorria dos ventrículos anteriores para as lâminas crivosas dos ossos etmóides, ou então do terceiro ventrículo para a fossa pituitária. Daí chegava à cavidade nasal e era descartada como flegma, ou muco.

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